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    Crítica: Vencedora do Nobel explora dominação e sexo desumanizado em 'Desejo'

    MARCELO BACKES
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    28/09/2013 03h17

    A escritora austríaca Elfriede Jelinek, vencedora do Nobel de Literatura em 2004, autora de "A Pianista", ganhou todas as premiações mais importantes da literatura em língua alemã. "Desejo", lançado recentemente pela Tordesilhas, é seu segundo romance publicado no Brasil.

    Hermann, o germano, homem e senhor, industrial, dono de uma fábrica de papel, e Gerti, sua mulher e escrava, são os personagens centrais de "Desejo". O medo da Aids leva o marido a usar a mulher como prostituta, abrindo mão das outras e passando a consumir apenas Gerti, mais um produto da sua fábrica.

    Tudo é descrito nos mínimos detalhes, mas com distanciamento. O sexo, grotesco, é desumanizado ao extremo. O homem cresce enquanto se excita, transforma-se em dono do mundo e da vida quando goza. Tatua sua mulher, enchendo-a de feridas, de marcas.

    A mulher abre mão de seu próprio corpo, e o que a salva é apenas a anestesia necessária à sobrevivência. Ela é a prostituta que não sai de casa. E, quando vagueia, bêbada, pela floresta coberta de neve, há sempre alguém para trazê-la de volta.

    O belo estudante que se aproveita dela e que se torna uma possibilidade de fuga é apenas mais um engano ao qual ela dirige suas nostalgias antes de receber sua troça e ser violada pelo marido e dono diante de seus olhos.

    Os personagens são protótipos que não permitem identificação, mas desnudam mecanismos fundamentais.

    Elfriede Jelinek critica o patriarcado e o capitalismo, vinculados e simbióticos, e mostra um sistema aparelhado para transformar a mulher em objeto, um mundo em que o corpete foi criado não apenas para dar formas mais femininas às mulheres mas também para impedi-las fisicamente de gargalhar; o riso jamais lhes caiu bem.

    O culto ao falo, típico da pornografia, é dissecado, seu poder masculino --ele encara o corpo da mulher como uma superfície que vale por seus buracos e, na melhor das hipóteses, pelas curvas que levam a eles--, desmontado.

    O diálogo com outras obras é intenso e vai de Hölderlin a Horácio. Se o poeta das "Sátiras" propagou a união do útil ao agradável, a escritora austríaca diz que o esporte sagrado aos homens une o inútil ao desagradável.

    ALTA VOLTAGEM

    Jelinek brinca com as palavras e promove condensações de alta voltagem poética, que a tradução, apesar de criteriosa, em muitos momentos não alcança.

    Os homens conhecem melhor a biografia de seu carro que a autobiografia de sua mulher. A linguagem da máquina é próxima da dicção do sexo, e vai além: os homens não têm ouvidos para o que as mulheres têm a dizer de si mesmas.

    O romance "Desejo" é um túnel sem luz no fundo, um mal-estar a cada linha, nojo sem consolo num mundo em que ninguém mais sabe o que é o amor.

    O homem reduz a mulher à anatomia submissa de sua sexualidade, e o romance apresenta vigor inclusive na ausência do sentimento apresentado no título, porque o desejo vira asco e deixa de existir.

    MARCELO BACKES é escritor, doutor em germanística e romanística pela Universidade de Freiburg, na Alemanha. É autor de "O Último Minuto" (Companhia das Letras), entre outras obras.

    DESEJO
    AUTOR Elfriede Jelinek
    EDITORA Tordesilhas
    TRADUÇÃO Marcelo Rondinelli
    QUANTO R$ 45 (240 págs.)
    AVALIAÇÃO bom

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