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    Crítico de teatro tenta convencer o cético dentro de si a gostar de Shakespeare

    CHARLES ISHERWOOD
    DO "NEW YORK TIMES"

    04/12/2013 15h06

    A orgia de Shakespeare encontrada nos palcos de Nova York nesta temporada é uma dádiva para quem nunca se cansa da obra dele. Mas há muitos que prefeririam não degustar este banquete. É chocante, mas é verdade. Existe em nosso meio um contingente considerável de avessos a Shakespeare.

    Eu me sentei com um desses céticos de Shakespeare --aquele que vi no espelho depois de assistir a uma performance especialmente ruim-- para lhe dar detalhes sobre a gama completa de produções shakespearianas em cartaz nesta temporada (elas estão no balé e na ópera, também).

    Fiz tudo o que pude para derrubar a resistência dele à ideia de assistir nem que fosse a apenas um desses espetáculos. Segue uma transcrição condensada e editada de nossa conversa.

    Divulgação
    O ator Orlando Bloom, no teatro Richard Rogers, na Broadway, onde protagoniza uma montagem moderna de 'Romeu e Julieta
    O ator Orlando Bloom, no teatro Richard Rogers, na Broadway, onde protagoniza uma montagem moderna de 'Romeu e Julieta'

    EU Ei, posso pedir alguns momentos do seu tempo?

    ELE Estou meio ocupado.

    EU Estou vendo, mas garanto que você vai demorar para passar do nível 33 de "Candy Crush Saga". [O olho esquerdo dele começa a se mexer, num tique nervoso]. Acredite em mim.

    ELE [De mau humor, colocando o iPhone na mesa] Você quer falar sobre o que?

    EU Shakespeare. Sabe o que é, há um monte de produções de Shakespeare que vêm a Nova York nesta temporada, e...

    [A música irritante e hipnótica de "Candy Crush Saga" volta a circular no ar morno de setembro.]

    EU Isto daqui é para o "New York Times".

    ELE Ok, ok. Cinco minutos. Mas preciso lhe dizer: odeio Shakespeare.

    EU Eu entendo. Agora me diga por quê.

    ELE Porque ele é um tédio.

    EU [após uma pausa] Vamos estipular, por um instante, que Shakespeare possa ser um tédio.

    ELE Cara, você devia ser um zero à esquerda nas aulas de debate, não? De que lado você está, afinal?

    EU Do lado do que é certo, da virtude, da verdade e da beleza, é claro, do lado do maior dramaturgo e poeta que já existiu. Mas me deixe continuar. É claro que Shakespeare malfeito é um tédio. Mas ninguém expressou melhor que ele o estado de espírito conhecido como tédio. Existe um solilóquio --ops, quero dizer trecho-- em "Hamlet" que vou ler para você agora. Os amigos-inimigos dele, Rosencratz e Guildenstern...

    ELE Conheci um cara que deu esses nomes aos seus cachorros. Que metidinho a besta. Essa é uma gíria britânica, sabia?

    EU Estou sabendo. Shakespeare mais ou menos inventou a gíria britânica. Mas, continuando. Esses dois perguntam a Hamlet por que ele está sendo tão chato, e um trechinho da resposta dele é: "Que obra-prima, o homem! Quão nobre pela razão! Quão infinito pelas faculdades! Como é significativo e admirável na forma e nos movimentos! Nos atos, quão semelhante aos anjos! Na apreensão, como se aproxima dos deuses, adorno do mundo, modelo das criaturas! No entanto, que é para mim essa quintessência de pó? Os homens não me proporcionam prazer."

    ELE Tá, muito bonito, mas isso me lembra: homens de legging não me proporcionam prazer nenhum.

    EU Verdade, legging não costuma ficar bem na maioria dos homens. Mas hoje em dia você tem mais chances de ver homens de legging numa aula de ioga que numa produção shakespeariana. O traje moderno virou mais comum. Você não viu Jude Law em "Hamlet" na Broadway? Ele basicamente usou um terno Prada. Se você não quiser se arriscar, uma boa opção é uma produção de "Júlio César" que está para chegar aqui e só tem mulheres no elenco. A história é ambientada num presídio feminino.

    ELE [ficando bem mais animado] Tipo "Orange Is the New Black"? Parece bacana. Mas não me lembro --Marco Antonio e Júlio César acabam ficando juntos nessa peça?

    EU A última vez que vi a peça, eles não ficaram.

    ELE Uma pena.

    EU Mas, quem sabe. Hoje em dia os diretores andam tomando liberdades de todos os tipos. Você viu "Love's Labour's Lost" ("Trabalhos de Amores Perdidos") no Central Park neste verão?

    ELE [ficando animado outra vez] Sim, foi demais. Aquilo foi Shakespeare?

    EU Bem, não exatamente, mas perto disso. Foi mais uma espécie de fusão. Mas concordo que foi demais. E ouvi dizer que há uma banda de thrash-metal nesta produção de "Júlio César".

    ELE Sou um cara mais emo.

    EU Vamos deixar "Júlio César" para lá. Que tal "Sonho de uma Noite de Verão?" É fácil de assistir e tem muita agarração. Algumas coisas meio bizarras também.

    ELE Tipo "50 Tons de Cinza"? Minha namorada anda lendo esses livros, isso está me deixando nervoso.

    EU Bom, o bizarro aqui é mais tipo bestialidade. Deixa todo o mundo nervoso, especialmente aquele pessoal hipersensível do Peta. Mas é uma bestialidade divertida! E esta nova produção é dirigida por Julie Taymor.

    ELE Quem?

    EU [cauteloso] Você gosta de musicais?

    ELE Gosto. Às vezes. Mais ou menos. [fica animado de repente] Você consegue me arrumar ingressos para "The Book of Mormon"?

    EU Não sei não, cara. Sinto muito. Mas, em todo caso, Julie Taymor dirigiu "Spider-Man: Turn Off the Dark". Você ouviu falar, certo?

    ELE Não assisti, mas ouvi dizer que é bom. [pausa longa, constrangida]

    EU Foi interessante. De qualquer jeito, ela é uma diretora de mão cheia. Ela criou a versão teatral de "O Rei Leão", que, por falar nisso, foi baseado em "Hamlet". Você ficaria surpreso se soubesse quanto da cultura moderna tem origem em Shakespeare. De qualquer jeito, Julie Taymor começou no teatro e vai dirigir Shakespeare em Nova York pela primeira vez em uns 20 anos. Esta produção de "Sonho de Uma Noite de Verão" vai acontecer num espaço novo no Brooklyn, então tem isso também. Parece que todos os restaurantes novos que são bons estão abrindo no Brooklyn, então...

    ELE É verdade, mas tem que ficar esperando horas para entrar. Para mim, o Brooklyn já era.

    EU Para você, Orlando Bloom também já era?

    ELE Na verdade, não. Ele é bacana. Ele fez aquele cara em "O Senhor dos Anéis", certo? E em "Piratas do Caribe"?

    EU Sim, e ele está estrelando uma nova produção de "Romeu e Julieta" na Broadway. Fica em Manhattan...

    ELE [espantado] Sério mesmo? Na sétima série tive que fazer uma cena dessa peça, e Tiffany Meltzer passou três anos depois disso tirando sarro de mim. [Sombrio] Foi por isso que não fui ao reencontro do pessoal que estudou comigo no colégio.

    EU Você não perdeu muita coisa. Os caras que faziam esportes engordaram. De qualquer jeito, você pode ver isso tudo no Facebook. Mas você quer mesmo ser aquele cara que continua apegado às opiniões intelectuais que tinha aos 16 anos? Me poupe. Se fosse assim, ainda estaríamos todos lendo "The Fountainhead". "Romeu e Julieta" não é só cenas de amor tipo água com açúcar.

    ELE Sim, mas e aquela história besta com a poção para dormir... alguém acreditaria nisso?

    EU Alguém acreditaria em qualquer coisa que aconteceu em "24 Horas"? Isso impediu você de assistir? De qualquer jeito, "Romeu e Julieta" é muito mais interessante do que sua memória lhe está dizendo. Há um tal de Mercúcio que praticamente rouba a cena e realmente acaba com ela, de um jeito do tipo "The Book of Mormon", tipo quando ele diz "a mão obscena do mostrador segura neste momento o ponteiro do meio-dia". Shakespeare é capaz de falar meio sujo.

    ELE Tá, tá, mas é o seguinte: metade do tempo eu não entendo nada do que estão falando. Acho que nem entendo a piada.

    EU Admito que mesmo quem é fluente na linguagem elizabetana pode ter dificuldades se for ver as produções sem preparo anterior. Mas eu não entendia metade do que diziam em "The Wire" --e você? De qualquer jeito, os atores realmente bons têm um jeito de fazer os versos de Shakespeare soar como ideias que passaram diretamente da cabeça dos personagens para suas bocas. E, quando é assim, você consegue acompanhar os pensamentos deles como se fossem os seus. Mark Rylance sabe fazer isso, ele é um ator e tanto. Vai estar em duas produções nesta temporada, como Olivia em "Twelfth Night"...

    ELE Olivia?

    EU Bem, hoje em dia geralmente se vêem mulheres fazendo os papéis femininos, mas na época de Shakespeare apenas homens podiam ser atores. E as produções importadas do Shakespeare's Globe procuram trazer de volta um pouco dessa tradição.

    ELE Mas peraí, o que foi que você disse sobre versos? Esqueci de falar: não curto muito poesia. Rimas me dão dor de cabeça.

    EU Quem falou alguma coisa sobre poesia? Esqueça essa história. Sim, de vez em quando há um dístico que rima, mas a maior parte da poesia de Shakespeare não soa nem um pouco como um versinho infantil. É apenas uma questão de encontrar uma forma rígida --chama-se pentâmetro iâmbico-- para canalizar pensamentos e emoções, e toda a arte precisa encontrar um casamento útil entre forma e conteúdo para dar certo. E, contrariando o que se pensa geralmente, as peças de Shakespeare também são cheias de prosa.

    ELE Acho que também odeio prosa.

    EU Você está falando nela.

    ELE [desconfiado] Não de propósito. De qualquer jeito, gosto mais de ação.

    EU Shakespeare também era assim. Ele não gostava do jeito grego ou do francês, com um monte de gente descrevendo decorosamente coisas emocionantes que já tinham acontecido fora do palco. As peças de Shakespeare são cheias de ação, principalmente violência, na realidade. Quando Macbeth diz "o sangue chama o sangue", ele não está brincando. E em "Titus Andronicus" uma garota tem as mãos decepadas, e uns caras são assados em tortas e servidos à mãe deles. Alguém arranca os olhos de um cara no palco em "Rei Lear"...

    ELE Acho que entendi. É meio pervertido. Mas já posso ver um monte de ação na TV hoje em dia. Você não ouviu dizer que a TV é o novo Shakespeare? Já viu "Breaking Bad" ou "Dexter"?

    EU Os dois são ótimos, mas provavelmente nenhum deles existiria se Shakespeare não nos tivesse ensinado a gostar de um bom vilão. Ele criou o arquétipo do anti-herói em "Macbeth" e "Ricardo III". As duas peças vêm para Nova York nesta temporada. Na realidade, vamos ter duas produções de Macbeth, com Ethan Hawke e Kenneth Branagh. Vá ver qualquer uma delas e pense nela como "Breaking Bad" sem a metanfetamina...

    ELE [com um suspiro pesado] Ok, ok, vou ver uma das duas. Mas já estou cansado desde já. Shakespeare. É dureza.

    EU Sim, Shakespeare é dureza. A vida é dura também. E o negócio é que, quando você se comove com uma grande produção de Shakespeare, isso gera uma espécie de consolo estranho, o sentimento de que as coisas que você tem que enfrentar --os dardos e arremessos do fado sempre adverso, por assim dizer-- já foram sofridas por homens e mulheres que viveram muito antes de você e serão sofridas por outros que virão depois. Você se sente mais ligado a toda a marcha triste e bela da experiência humana --o mistério do amor, o horror da morte, a dor da solidão--, mais do que nunca antes.

    ELE Uau, dá um time. Você está soando meio shakespeariano!

    EU Me desculpe. Vou deixar você voltar para o seu jogo. Ah, tem mais uma coisa: você pode assistir a quantas produções de Shakespeare quiser --sejam elas boas, ruins, maravilhosas ou péssimas--, nenhuma delas vai deixar você com aversão a chocolate. É mais do que se pode dizer de "Candy Crush".

    ELE [desanimado] Ainda nem cheguei aos níveis de chocolate.

    EU Aposto que você vai chegar logo, meu filho. Gostei do nosso bate-papo. A gente se vê por aí. Ou, como disse Julieta, "deixar-te é uma dor tão doce".

    ELE Não exagera, cara.

    Tradução de Clara Allain

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