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    'Quem passou a vida humilhado aprende a se defender', disse Nelson Ned

    ANDRÉ BARCINSKI
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    07/01/2014 03h06

    Em uma de suas últimas entrevistas, realizada há cerca de dez meses, o cantor Nelson Ned alternava momentos de bom humor com lapsos de memória.

    Ned morreu anteontem, aos 66 anos. Sua condição física vinha deteriorando há seis anos, depois de sofrer um derrame que o deixou confinado a uma cadeira de rodas.

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    Era um sujeito sarcástico e dono de um humor ácido, que não se importava em fazer piadas com a própria altura.

    "Depois de três filhos, fiz uma vasectomia. Sou pequeno, mas não sou burro!", disse Ned na entrevista realizada num sítio em Cotia que pertence a Neuma, sua irmã.

    Ned nasceu em 1947, em Ubá (MG). Foi o primeiro de sete filhos do casal Nelson de Moura Pinto e Ned d'Ávila Pinto. Era um bebê de tamanho normal. Quando completou quatro meses, seus pais começaram a perceber algo errado em seu crescimento. O bebê sofria de displasia espondiloepifisária, doença rara que causava nanismo e deformações esqueléticas.

    Foi um choque para os pais. Não havia nenhum caso de nanismo na família (os seis irmãos de Ned são normais). "Na escola zombavam de mim, mas minha mãe se recusou a me tirar da escola. Ela dizia: 'Vou criar meu filho para o mundo, e não um mundo para meu filho'", disse.

    Desde pequeno, Ned cantava muito bem. Ainda criança, conheceu o grande Ary Barroso, seu conterrâneo de Ubá. Ned sentou no colo do compositor e cantou "Risque", uma das canções de Ary. O compositor caiu na gargalhada quando o pequenino errou o verso "Afogue as saudades/ nos copos de um bar" e cantou "nos copos de Ubá".

    Divulgação
    O cantor Nelson Ned no estádio de Nezahualcoyotl, no México, em 1988; o show reuniu 50 mil pessoas
    O cantor Nelson Ned no estádio de Nezahualcoyotl, no México, em 1988; o show reuniu 50 mil pessoas

    Nos anos 70, Ned virou um astro: fazia shows lotados no exterior, ganhou oito discos de ouro nos EUA e muito dinheiro. Tinha apartamentos de luxo no Rio e em São Paulo, andava em limusines e frequentava boates da moda, como o Gallery, em São Paulo. Bebia, cheirava cocaína e colecionava armas. "Quando ia ao Gallery, só queria saber de duas coisas: champanhe Dom Pérignon e pó."

    Vaidoso, cercava-se de belas mulheres e seguranças armados. Para sacanear os grã-finos da elite paulistana, que torciam o nariz quando viam aquele anão metido entrando no Gallery, Ned combinou com o DJ que lhe pagaria US$ 100 para tocar "Eu Não Sou Cachorro Não", de Waldick Soriano, quando chegasse à boate. "Você tinha de ver a cara de espanto do pessoal!"

    Sempre que se apresentava na Colômbia, Ned era visitado nos camarins por membros dos cartéis de drogas, que lhe ofereciam mulheres e cocaína. Disse ter conhecido Pablo Escobar, chefão do Cartel de Medellín: "Conheci, claro, cantei várias vezes pra ele. Mataram ele, né?" (Escobar foi morto em 1993).

    Ned sempre reclamou do preconceito: "O Brasil é a terra mais preconceituosa que conheço. O preconceito era contra o meu tamanho e meu estilo de música." O cantor afirmou que isso o ensinou a encarar qualquer plateia: "Quem passou a vida toda sendo humilhado aprende a se defender. Quando canto, me transformo, consigo ver o ar transformado em música. É uma sensação gloriosa."

    ANDRÉ BARCINSKI é jornalista e diretor do programa "O Estranho Mundo de Zé do Caixão", no Canal Brasil.

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