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    'Febre' de aplauso de pé incomoda artistas e críticos de teatro

    NELSON DE SÁ
    DE SÃO PAULO

    23/01/2014 03h15

    A Europa era exceção, até poucos anos atrás. Mas também por lá o crítico inglês Michael Billington lamentou que esteja chegando o "hábito sujo americano" de aplaudir de pé no final da peça. Qualquer peça.

    O crítico americano Ben Brantley concorda e até lançou um apelo público, no "New York Times", "pela volta do aplauso sentado". Aplaudir de pé, afirma, "virou um gesto social automático", sem sentido.

    No Brasil, o diretor Antunes Filho e a atriz Nydia Lícia, com carreiras iniciadas há mais de meio século no TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), atestam que "essa mania de levantar sempre", como ela descreve, é recente.

    Lenise Pinheiro/Folhapress
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    Público aplaude monólogo 'A Vida Sexual da Mulher Feia'

    Antunes arrisca que o hábito se disseminou a partir dos anos 90. "Antes era mais seco", diz. "Agora é um touro bravo, vai que vai. Agora é absolutamente nada."

    "Antes era um gesto estrondoso para o ator", relata Nydia, citando, entre os raros aplausos de pé no TBC, "Seis Personagens em Busca de um Autor" (1951), com Sergio Cardoso, Cacilda Becker, Paulo Autran e Cleyde Yáconis.

    "Era excepcional", diz. "Agora levantam, assobiam, gritam e fica por isso mesmo. Você não tem mais medida, não sabe até que ponto agradou. O ator fica mimado."

    Com a presença crescente de celebridades do cinema e da TV no palco, tanto aqui como no exterior, o fenômeno avançou para o meio das apresentações, para a entrada em cena. "A sugestão é, no caso de estrelas menos veneráveis, como Julia Roberts, 'bom para você, você é famosa'", critica Brantley.

    PANDEMIA

    Ele reconhece que aplaudir de pé é um "vírus" que pode ter tido sua origem na Broadway, seguindo depois para Europa e outros junto com as franquias dos musicais nova-iorquinos.

    Cláudio Botelho, que ao lado de Charles Möeller ajudou a estabelecer os musicais no Brasil, também questiona o fenômeno, mas acrescentando ser mais acintoso por aqui —onde programas de auditório teriam instituído, segundo ele, que "quem quer que apareça é aplaudido".

    Lamenta, sobretudo, que "não tem mais diferença: aplaudem de pé tanto Marília Pêra como qualquer grupo jovem". Citando também Bibi Ferreira e Fernanda Montenegro, cobra: "O que você vai dar como reconhecimento às grandes divas?".

    São muitas as hipóteses para a "febre", segundo o "NYT": espectadores aplaudem para justificar o ingresso caro; por serem turistas, não habituados ao teatro; pelo alívio físico de se levantar; até para chegar antes à saída, nas plateias lotadas.

    Antunes acrescenta um fenômeno local relativamente novo e semelhante àquele dos turistas na Broadway: "A classe média aumentou. É uma coisa boa, mas eles ainda não têm base. Ir ao teatro já é uma vitória social".

    Saulo Vasconcelos, protagonista de musicais como "O Fantasma da Ópera" no Brasil e no exterior, soma ainda duas razões específicas, no caso de São Paulo. "As pessoas aplaudem já se levantando para ir embora, porque o estacionamento é um inferno. E também porque o espectador daqui é gentil, quer mostrar seu carinho."

    AUTOENGANO

    Ron Daniels, que começou como ator nos anos 60 no Teatro Oficina e a partir dos anos 70 se estabeleceu como encenador em companhias como a Royal Shakespeare Company e o American Repertory Theater, acredita que o problema é maior nos Estados Unidos e no Brasil.

    "Em Nova York eles sempre se levantam. Na Inglaterra, só em musical, Shakespeare não", diz ele. "Eu detesto esses aplausos, o espetáculo perde o valor. Mas, quando é merecido, a 'standing ovation' [aclamação de pé] é maravilhosa."

    Para Daniels, o fenômeno "é muito esquisito: a plateia se congratula a si mesma". Michael Billington, que é crítico do londrino "Guardian", concorda que a febre do aplauso de pé surgiu com o público "tentando enganar a si mesmo", sugerindo que a cura teria de partir dele.

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