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    Feira de arte na Holanda reúne super-ricos para comprar ovelhas em formol

    SILAS MARTÍ
    ENVIADO ESPECIAL A MAASTRICHT (HOLANDA)

    19/03/2014 12h46

    Na esquina da Champs-Elysées com a Sunset Boulevard, cifras podem ser estratosféricas. Claro que a mais famosa avenida de Paris não cruza com a via mais badalada de Hollywood, a não ser debaixo do teto da Tefaf, a maior feira de antiguidades e arte clássica da Europa, que acontece agora em Maastricht, na Holanda.

    Lá dentro, os corredores têm nome de ruas, praças e avenidas que ostentam os metros quadrados mais caros do mundo, da Champs-Elysées parisiense à Madison nova-iorquina. E isso faz certo sentido quando se leva em conta os preços das obras à venda, como um Modigliani de R$ 61,7 milhões ou um Van Gogh de pelo menos R$ 32,5 milhões.

    A meio caminho entre Amsterdã e Bruxelas, mas também muito perto de Paris, essa cidade holandesa é bem fora de mão para quem chega em voos comerciais. Mas isso não é um problema para a clientela da Tefaf. Todo ano, o pequeno aeroporto da cidade fica abarrotado no mês de março, com cerca de 200 jatinhos privados que pousam ali.

    Mas se antes o público vinha pronto para comprar antiguidades, como bustos egípcios, porcelana chinesa e vasos gregos de tempos remotos, hoje o perfil já é mais variado, o que explica como uma única feira pode reunir exemplos raros de antiguidades, como um prato chinês do século 13 à venda por R$ 51,3 milhões, e obras contemporâneas, como uma ovelha mergulhada em formol de Damien Hirst, com etiqueta de míseros R$ 8,8 milhões.

    "Acontece cada vez mais de os colecionadores que só compravam antiguidades também decidirem comprar arte contemporânea", diz Dino Tomasso, um dos sócios da galeria Tomasso Brothers, de Londres, que levou artefatos antigos e ovelhas e borboletas de Hirst à feira. "Vimos isso como uma boa oportunidade."

    Também parece haver uma preocupação não só com a peça em si, mas com sua história, o que faz da Tefaf um celeiro de obras adensadas por anedotas que as circundam.

    Enquanto Hirst bate todos os outros artistas contemporâneos no quesito bizarrice, há peças clássicas com muita história para contar.

    No caso de Amedeo Modigliani, artista italiano que fez poucas telas, mas que foram falsificadas à exaustão, é um dos que não sai da lista dos mais vendidos na Tefaf,
    mas precisa de garantias até não poder mais para que colecionadores o vejam como um investimento seguro.

    Uma de suas telas à venda na feira, no estande da galeria canadense Landau Fine Art, é uma das obras mais caras do evento, com o preço salgado de R$ 61,7 milhões. Mas Robert Landau, sócio da galeria, garante que a obra é autêntica, dizendo que ele mesmo comprou a peça, que estava havia 60 anos no acervo do MoMA, em Nova York, e aparece em todos os livros sobre Modigliani.

    "Não acho que seja um preço tão alto assim", diz Landau. "As coisas nesta feira custam muito caro mesmo."

    Na mesma pegada fetichista, há um conjunto de desenhos de Andy Warhol, da série que ele desenhava enquanto admirava os rapazes que frequentavam o café Serendipity, em Nova York. Vendidos pela galeria alemã Daniel Blau como um conjunto inseparável, são mais de 20 desenhos a lápis do maior mestre da pop art por R$ 1,8 milhão.

    É indiscutível que uma obra de Warhol feita à mão tem seu valor, mas sendo essa série um trabalho com valor mais afetivo do que estético é fácil que conquiste o coração dos colecionadores que frequentam a Tefaf.

    Outro mestre pop, Jasper Johns, tem presença semelhante na feira holandesa. Um singelo rascunho para sua famosa bandeira norte-americana rabiscado numa folha de caderno alcançava o valor de R$ 1,2 milhão.

    Nesse ponto, a Tefaf corrobora outra observação recente entre os agentes de mercado. Não basta ser pop, é preciso ser um mestre. Ou seja, por mais badalado que seja um artista contemporâneo, colecionadores estão atrás de nomes garantidos.

    "Já não existem mais estrelas da década, são estrelas do século, como Bacon, Basquiat, Lichtenstein", diz Clare McAndrews, economista que elabora um estudo anual do mercado global a pedido da feira. "Então artistas como Damien Hirst já não se dão tão bem. As pessoas já não compram a não ser que seja uma estrela sem sombra de dúvida."

    E elas são raras, mas não ausentes. Outra obra que ofuscou a concorrência era uma tela do impressionista Vincent van Gogh, mostrando um moinho na França. A obra à venda na galeria Dickinson, de Londres, não teve o preço divulgado, mas seus vendedores afirmavam que a peça vale mais do que R$ 32 milhões.

    "É um quadro fantástico", diz James Roundell, diretor da Dickinson. "Van Gogh estava em Paris e pintou esse quadro pouco antes de se mudar para o sul da França. Estava descobrindo a cor pela primeira vez. E há uma liberdade aqui que não parece existir em sua fase holandesa."

    Além de Van Gogh e Modigliani, há espaço ainda para mestres em ascensão, como os japoneses do grupo Gutai, que despontou nas décadas de 1950 e 1960. Tema de uma retrospectiva no ano passado no Guggenheim, em Nova York, artistas do movimento dominavam o estande da galeria belga Axel Vervoordt.

    Mas no mesmo espaço, ao lado de clássicos do grupo Gutai e do movimento alemão conhecido como Zero, que será tema de uma mostra em abril na Pinacoteca do Estado, em São Paulo, havia uma grande instalação do artista ganês El Anatsui.

    Primeiro africano a bater a marca de US$ 1 milhão num leilão, Anatsui, que cria suas obras usando material descartado, tinha uma peça que ocupava uma parede inteira na Tefaf à venda por R$ 1,9 milhão.

    "Ele é como um alquimista", diz Anne Sophie Dussolier, da galeria Axel Vervoordt. "É capaz de transformar lixo numa fortuna."

    Da mesma forma como a Tefaf é capaz de transformar o banal em objeto cobiçadíssimo. Além de pratos, bustos, vasos e ovelhas em formol, há galerias especializadas em selas de cavalo feitas de prata do século 19 e potinhos chineses de rapé datados do século 15, que podem chegar a valer R$ 9,7 milhões.

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