• Ilustrada

    Friday, 17-May-2024 05:44:22 -03

    Crítica: Denso e eletrizante, romance faz vibrante defesa da diferença

    JOÃO LUÍS CECCANTINI
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    22/03/2014 03h04

    Em meio à febre de distopias lançadas no país nos últimos tempos, tais como "Jogos Vorazes", de Suzanne Collins, "Divergente", de Veronica Roth, ou "Trash", de Andy Mulligan —para citar apenas alguns dos melhores textos—, é publicada no Brasil agora aquela que talvez seja a mais consistente dessas obras: "Lua de Larvas", da inglesa Sally Gardner.

    O livro chega até nós com um currículo já considerável. Conquistou dois importantes prêmios do exigente mercado editorial da literatura de língua inglesa —Carnegie Medal e Costa Book Awards— e desencadeou caloroso debate na Inglaterra, por apresentar um protagonista disléxico.

    Standish Treadwell, o protagonista, tem 15 anos, um nome bizarro, um olho de cada cor (um azul e um castanho) e é ele mesmo o narrador da história. Não sabe ler e escrever nem mesmo amarrar o cordão dos sapatos, abotoar direito a camisa ou dar o nó na gravata.

    Eleonore de Bonneval/Divulgação
    A escritora inglesa Sally Gardner, autora do livro 'Lua de Larvas', em 2013
    A escritora inglesa Sally Gardner, autora do livro 'Lua de Larvas', em 2013

    Se isso já seria um enorme problema para qualquer garoto ou garota de sua idade, para Standish as coisas são muito piores porque vive em uma sociedade distópica, em que vigora o totalitarismo, a corrupção e a opressão máxima dos indivíduos.

    Reside na Zona 7, gueto ao qual são relegados os habitantes "impuros" da Terra Mãe e é obrigado a frequentar uma escola militaresca, em que prepondera a intolerância absoluta e a autoridade nunca pode ser questionada.

    Por força do acaso, Standish e seu único grande amigo, o vizinho Hector, têm sua trajetória mesclada às ações desse Estado cruel e temível, em muito parecido com aquele criado magistralmente por George Orwell em "1984", o que acarreta consequências pesadas para os dois jovens.

    E isso se dá, particularmente, porque Standish descobre uma enorme farsa que está sendo montada pelo governo de Terra Mãe e resolve desmascará-la em público.

    Como Standish é o narrador, à medida que ele e seu amigo vão sofrendo as pressões do Estado violento, a história, narrada de forma oblíqua pelo enfoque peculiar do garoto disléxico, avança com um nível de tensão crescente, ganha em objetividade e mantém o leitor eletrizado até o desfecho.

    A linguagem empregada, próxima à oralidade, é enxuta e expressiva, permeada por alguma ironia do narrador, expressões de duplo sentido e metáforas pouco usuais, num conjunto afinado, que confere à narrativa densidade e constrói com precisão a atmosfera kafkiana e claustrofóbica que envolve a ação e continua viva na memória, mesmo terminada a leitura.

    Ao recusar o caminho fácil de uma representação verista ou documental para tratar da matéria de que se ocupa, preferindo, antes, um texto alegórico de elevado poder simbólico, a autora alcança um resultado literário de muito bom nível.

    Chama a atenção que nem mesmo a dislexia do garoto é explicitada como tal no livro, o que confere à obra um caráter universal, atraente para os mais variados públicos.

    A obra consegue fazer, de maneira eloquente, uma vibrante defesa da diferença, da liberdade e da fantasia, que se traduz bem numa frase de Hector ao se referir a seu corajoso e decidido amigo: "Tem os que pensam nos trilhos, e depois tem você, Standish, uma brisa no parque da imaginação".

    JOÃO LUÍS CECCANTINI é professor de Literatura Brasileira da UNESP/ FCL Assis.

    LUA DE LARVAS
    AUTORA Sally Gardner
    ILUSTRAÇÃO Julian Crouch
    TRADUÇÃO Waldéa Barcellos
    EDITORA WMF Martins Fontes
    QUANTO R$ 29,90 (298 págs.)
    AVALIAÇÃO ótimo

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024