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    Crítica: Livro 'Uns Contos', de Ettore Bottini, já nasce clássico

    JOCA REINERS TERRON
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    22/03/2014 03h28

    São raros livros como "Uns Contos", de Ettore Bottini, e por diversos motivos. Evidentemente, porque o conto é espécie literária enganosa, e sua matéria é tão fugidia quanto o aprendizado de suas manhas construtivas.

    Na exígua área ocupada pelo gênero, qualquer mínimo deslize narrativo é letal.

    Também não sobram estreias seguras como esta, e cabe aqui outra singularidade bem mais triste, pois é estreia que nasce póstuma: Ettore Bottini, amplamente conhecido por seu trabalho com design gráfico editorial, morreu em dezembro do ano passado.

    A segurança mencionada advém da linguagem de talhe clássico, da minúcia vocabular com predileção por expressões incomuns ("embarafustou para a rua", lê-se em "Todos os Medos") e o jargão de ambientes que ressurgem no entremear das histórias, como o do turfe, da marinha e da pesca fluvial, e em muito bem-vindas paisagens rurais que destoam da onipresença urbana no conto brasileiro contemporâneo.

    LEMBRANÇAS

    A sobriedade não cessa aí, estendendo-se aos temas, atribuindo certo sabor anacrônico aos relatos; contrariamente ao que seria de esperar, sob condução rigorosa do autor, não se configuram como paródias em nenhum instante, muito menos soam deslocados ou ingênuos.

    Registros do final de uma era, do traslado da vida interiorana à urbe e igualmente da substituição da família como célula mater pela república de amigos, "Uns Contos" tem seu sustentáculo no quarteto composto por "As Provisões do Tempo", "O Mesmo Rio", "Mundo Natural" e "Todos os Medos", todos contos de antologia que se alimentam das lembranças.

    FLUXO DO TEMPO

    No primeiro, dois velhos amigos viajam juntos para que um deles, viúvo, oficialize a venda de sua fazenda. No seguinte, o fluxo heraclitiano do tempo é testado em uma pescaria entre primos num rio à espera da segunda passagem do cometa Halley, 14 anos no futuro.

    Essa circularidade se complementa em "Mundo Natural" quando, após velar o pai, um homem permanece encerrado em casa com uma mariposa moribunda.

    A conclusão se dá com um recurso utilizado com eficácia por Bottini: depois de narrar um episódio da infância, recusando o fecho de ouro da frase final, o conto se estende através da recuperação de outro texto ("The Wendigo", de Algernon Blackwood), ao modo de glosa ou comentário que amplia sua sugestão.

    Estreia inapelavelmente tardia (Ettore Bottini tinha 65 anos quando morreu), e tardia demais em decorrência das circunstâncias, o surgimento de "Uns Contos" vem revestido do idêntico material a compor sua linguagem: já nasce clássico, e deve ser lembrado.

    JOCA REINERS TERRON, 45, é escritor, autor do romance "A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves" (Companhia das Letras), entre outros.

    UNS CONTOS
    AUTOR Ettore Bottini
    EDITORA Cosac Naify
    *QUANTO * R$ 32 (128 págs.)
    AVALIAÇÃO ótimo

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