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    Tortura protagoniza o primeiro filme de ficção de Renato Tapajós

    LUCAS FERRAZ
    DE SÃO PAULO

    27/03/2014 03h00

    A queda do guerrilheiro que luta contra a ditadura é seguida por um interminável suplício: palmatórias, espancamentos, choques elétricos, a cadeira do dragão (toda metálica, de onde vêm mais choques) e o pau de arara.

    O ano é 1969. O militante cai nas mãos da temida Oban (Operação Bandeirante), a ação conjunta entre Forças Armadas e polícia para enfrentar as organizações da esquerda armada.

    Em "Corte Seco", primeira incursão do documentarista e escritor Renato Tapajós no cinema ficcional, a tortura irrompe como protagonista. As cenas de sevícias, presentes em quase todos os 90 minutos, chocam pelo realismo.

    Divulgação
    Gabriel Miziara como o militante Rodrigo no pau de arara
    Gabriel Miziara como o militante Rodrigo no pau de arara

    "Foi uma opção mostrar a tortura explicitamente, sem glorificá-la e sem fazer apenas menções. A ideia é deixar clara a ruptura que a tortura provoca", diz o diretor.

    A Folha assistiu ao filme há duas semanas na produtora de Tapajós, em Campinas (SP). Ainda sem previsão para entrar no circuito comercial, a obra deve ser incluída em festivais no Brasil e no exterior e exibida para a presidente Dilma Rousseff numa sessão privada em Brasília.

    Paraense radicado em São Paulo e ex-militante político, Tapajós, 70, é autor de filmes que têm a ditadura como pano de fundo. É o caso de "Linha de Montagem", que retrata as greves sindicais dos anos 1970 e o surgimento do líder Luiz Inácio Lula da Silva.

    Para fazer "Corte Seco", que começou a escrever há 13 anos, ele se baseou na própria história. Como Rodrigo (Gabriel Miziara), o protagonista, Tapajós também foi preso na Oban em 1969, enfrentando os sete dias de tortura retratados no filme.

    "Há pequenos ajustes e a recriação dos diálogos, mas, basicamente, tudo aconteceu daquele jeito", diz.

    Não faltam referências a episódios e personagens da ditadura, como o sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, a animosidade entre militares e policiais dentro do aparato da repressão e figuras exóticas como o policial Raul Careca, que fez parte do CCC (Comando de Caça aos Comunistas).

    O diretor diz ter enfrentado dificuldades para arrecadar recursos para finalizar o filme, cujo custo total foi de pouco mais de R$ 1,2 milhão. O dinheiro saiu da Petrobras, pela lei de incentivo fiscal ao audiovisual, via Ancine.

    Isso se refletiu na escolha dos atores, desconhecidos do grande público. Também foi uma opção estética a ausência de efeitos especiais e recursos como a fusão de imagens. Só há cortes secos.

    SEM ESPETÁCULO

    "A espetacularização da tortura é feita de tal maneira no cinema que, às vezes, dá razão ao torturador", completa o diretor, crítico de produções como "Tropa de Elite" e "O que É Isso, Companheiro?" por, segundo diz, usarem a tortura como espetáculo.

    Uma exceção, para ele, é "Batismo de Sangue", de Helvécio Ratton, sobre Frei Tito, frade dominicano que não resistiu às sevícias da repressão. Lançado em 2007 e baseado no livro homônimo de Frei Betto, causou polêmica pelas cenas de tortura.

    Tapajós diz estar contente por ter finalizado o filme às vésperas dos 50 anos do golpe, num tempo em que o país ainda "relativiza o real significado da tortura" e convive com a prática no cotidiano.

    Não à toa que, para fechar "Corte Seco", recorreu a uma frase do jornalista Alípio Freire, seu colega de militância: "Nós sobrevivemos ao pau de arara, mas o pau de arara também sobreviveu".

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