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    Europa debate venda de patrimônio para contornar crise

    RAPHAEL MINDER
    DO 'NEW YORK TIMES'

    15/04/2014 04h18

    Em toda a Europa, a crise fez em poucos anos algo que partidos políticos britânicos e americanos se esforçam há anos para conseguir: reduziu as dimensões do governo. Esse é o caso em Portugal, possivelmente mais que em qualquer outro lugar. O governo português já se despiu de ativos que incluem a empresa que administra os aeroportos nacionais, uma operadora rodoviária e o serviço de correios.

    Mas, quando foi aventada a venda de uma coleção de obras do artista catalão Joan Miró, isso provocou uma discussão intensa sobre o patrimônio cultural e se ele deve ou não ser protegido. "A obsessão de eliminar tudo o que seja público está levando o governo a levar as privatizações muito longe", declarou a deputada socialista e ex-ministra da Cultura Gabriela Canavilhas. "Mesmo em Detroit, que foi declarada falida, a decisão final foi de não vender obras de arte."

    A polêmica portuguesa faz parte de uma discussão mais ampla que está sendo travada no sul da Europa -duramente atingido pela crise, mas historicamente cheio de tesouros- sobre as vantagens e os limites de se enxugar o governo. Em muitos casos, a polêmica gira em torno da preservação pública ou da privatização do patrimônio cultural, algo que toca os nervos sensíveis da identidade nacional.

    A Grécia tem um plano de privatização ousado, que inclui a venda de sua companhia de gás e de imóveis em ilhas. O país já se comprometeu a vender bens no valor de € 11 bilhões, ou US$ 15 bilhões, até o final de 2015 para reduzir suas dívidas e pagar seus credores. Mas os planos foram reduzidos devido a transações que deram errado e problemas de má administração.

    A decisão recente do governo grego de vender alguns imóveis em volta da Acrópole foi muito repudiada. Para os críticos, em vez de privatizar o distrito histórico no coração de Atenas, as autoridades deveriam preservá-lo como algo que pertence a todos os gregos. Na Espanha, bastou aventar a possibilidade de privatizar os teatros públicos de Madri para que protestos fossem às ruas. Na Itália, o debate gira em torno principalmente da falta de preservação pelo governo de sítios históricos como Pompeia, relegada a descaso tão grande que é como se o governo tivesse aberto mão do lugar.

    Suzanne Plunkett - 30.jan.2014/Reuters
    Funcionária da casa de leilões Christie diante de obras do artista espanhol Joan Miró
    Funcionária da casa de leilões Christie diante de obras do artista espanhol Joan Miró

    A recessão econômica pode estar diminuindo em alguns países da zona do euro, mas o peso da dívida que precipitou a crise mostra poucos sinais de estar melhorando. Em alguns casos, a dívida aumentou, já que, devido ao desemprego alto e ao crescimento baixo, a receita tributária não subiu.

    Portugal já vendeu US$ 11 bilhões em ativos. O governo de centro-direita também fez cortes nos gastos sociais, incluindo programas educacionais e de bem-estar social, para cumprir os termos de um pacote de resgate internacional negociado em 2011. Políticos da oposição socialista estão lutando para não deixar que a coleção de Miró siga o mesmo caminho.

    Canavilhas é uma das figuras políticas que estão tomando medidas legais para impedir a venda das obras e, em vez disso, garantir que sejam classificadas como parte do patrimônio nacional. A questão foi discutida no Parlamento no mês passado, mas não se chegou a uma conclusão.

    Diante dos protestos, a Christie's de Londres cancelou o leilão de Miró programado para fevereiro, citando dúvidas legais quanto ao direito de Portugal vender as obras. Depois, a casa de leilões informou que o leilão irá adiante em junho, embora a angústia diante da iniciativa do governo não tenha diminuído. O caso tornou-se emblemático de discussões semelhantes em outros países.
    Antes de chegar a Portugal, a coleção de Miró já tinha seguido um caminho tortuoso no mercado de arte, partindo da galeria nova-iorquina do marchand Pierre Matisse, filho do pintor francês, para uma coleção particular no Japão e depois para o Banco Português de Negócios (BPN). Ao longo dessa trajetória, ela foi dividida, de modo que 85 das cerca de 200 obras terminaram em Lisboa. Elas incluem "Mulheres e Aves", previsto para render cerca de US$ 7 milhões, e "Pintura", avaliado em US$ 4 milhões.

    As obras foram parar nas mãos do Estado português em 2008, quando o governo foi forçado a assumir o controle do BPN, paralisado por dívidas e irregularidades administrativas.A Parvalorem, holding pública, quer vender a coleção para ajudar a cobrir o custo do resgate do banco.

    Em 2008, o BPN tentou negociar a venda das obras de Miró a um comprador americano. "O governo só está tentando completar o que já tinha sido previsto quando o banco estava em mãos privadas", disse o deputado conservador Michael Seufert. "O contribuinte deve ser chamado a pagar o mínimo possível" pelo resgate do banco.

    Para os adversários da iniciativa, o valor que o governo espera levantar com o leilão -algo em torno de US$ 50 milhões- é quase irrelevante quando comparado à dívida total de Portugal ou ao custo do pacote de resgate internacional, US$ 110 bilhões. "A única coisa boa do BPN é que ele trouxe obras de arte especiais a Portugal", disse Álvaro Beleza, do Partido Socialista. "Estamos passando por um período econômico ruim, muitos bens do Estado podem ser vendidos, mas existem limites. Nossa dignidade exige que essas pinturas sejam conservadas."

    Carlos Cabral Nunes, galerista que vem fazendo campanha para que as obras de Miró continuem no país, concordou. "Quando você vende algo como a companhia de eletricidade ou o serviço de correios, os serviços continuam presentes e disponíveis aos cidadãos", disse. "Quando você leiloa obras de arte, garante que ninguém mais em Portugal se beneficie delas. É uma destruição irreparável de nosso patrimônio."

    A coleção de Miró nunca foi exibida ao público português. Pedro Lapa, diretor do Museu Coleção Berardo e um dos poucos especialistas portugueses em arte a ter visto as obras, disse que não conseguiu convencer o BPN ou o governo a organizar uma exposição.

    Para ele, Portugal deveria agora criar um museu novo em torno da coleção Miró e de outras obras, para preencher um vazio cultural.

    Ao responder por que um pintor catalão deve ser usado para promover a cultura portuguesa, Lapa disse: "As pessoas vão ao Louvre para ver a Mona Lisa, mas Da Vinci era italiano, não francês".

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