Da janela de seu apartamento no Rio, Alair Gomes fotografou belos garotos na praia de Ipanema, um conjunto de 20 mil imagens que o tornaram famoso depois de sua morte —ele foi estrangulado por um de seus modelos, aos 70 anos, em 1992, um caso nunca investigado.
Mas Gomes também voltou suas lentes para o quintal de uma casa ao lado do prédio onde morava, fotografando o chofer dos vizinhos durante a limpeza de uma Mercedes.
Em 48 fotografias, o artista criou uma espécie de fotonovela que registra em chave erótica a relação entre homem e máquina. O ensaio inédito, realizado em 1975 e guardado nos arquivos do artista doados à Biblioteca Nacional, no Rio, será publicado pela primeira vez agora numa nova edição da revista "Zum", que será lançada nesta semana.
São flagras de um rapaz de shorts encerando o carro dos patrões, fazendo ajustes no motor e esfregando os aros das rodas. Quando terminava o serviço, ele sempre penteava os cabelos e se trocava, vestindo uma camisa, calças sociais e um par de sapatos.
"Ele fica insistindo nesse cara, dia após dia, lavando o carro", diz Thyago Nogueira, editor da revista, sobre o trabalho de Gomes. "É uma relação erótica não só dele com o chofer, mas também do cara com o carro, um erotismo da máquina e sua potência."
De certa forma, a série "A Não História de Um Chofer" ilustra as ideias de Gomes sobre a força da fotografia como meio expressivo autônomo, e não inferior à pintura.
E abre mais um capítulo sobre o que se sabe sobre Gomes, artista recluso que vem ganhando espaço no circuito depois ter uma das maiores presenças na Bienal de São Paulo de dois anos atrás.
No caso, o artista lutava contra a ideia de "instante decisivo" na fotografia, a máxima do francês Henri Cartier-Bresson, que, nas palavras de Alair Gomes, "transforma grupos comuns de pessoas e de características ambientais em situações arquetípicas".
Inspirado pelos estudos de movimento do britânico Eadweard Muybridge, que fotografava homens e cavalos em corridas, Gomes queria não um instante, mas vários momentos mais banais e menos decisivos, que juntos construiriam uma nova narrativa.
Daí chamar de "não história" o que se passa com o chofer da casa ao lado. Em toda a sua obra, que teve seu auge nos anos 1970, Gomes parece contrapor a imagem de belos rapazes aos tempos violentos do regime militar no país.
Era o que o artista chamava de "aceitação desinibida do prazer" como "modo de reagir", ou o que Frederico Coelho, estudioso da contracultura no Brasil, chama de "busca permanente da beleza incrustada no registro banal", em ensaio na revista.
"Ele mostra que política também se fazia com a reivindicação do prazer", escreve Coelho. "É uma escolha radical de ruptura e, por isso, sua obra constitui um espelho invertido e poderoso do hedonismo em tempos de horror."
ZUM
AUTOR Thyago Nogueira (org.)
EDITORA Instituto Moreira Salles
QUANTO R$ 49,50 (184 págs.)
LANÇAMENTO hoje, às 15h, no Pivô, av. Ipiranga, 200, São Paulo