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    Vargas Llosa fala de Euclides da Cunha e enfrenta leitor que rasga livro

    SYLVIA COLOMBO
    ENVIADA ESPECIAL A BOGOTÁ

    01/05/2014 11h58

    "Eu o vi, o toquei, o agradeci por falar o que tem de ser dito sobre a América Latina". Rosana Pelayo, 34, venezuelana radicada em Bogotá, resumiu assim seu encontro breve com o peruano Mario Vargas Llosa, 78, após abrir espaço e acotovelar-se entre as mais de mil pessoas que quiseram ver, filmar, fotografar e abraçar o Nobel de Literatura.

    "Desde a minha juventude me identifico com seus personagens, com Lituma [personagem de "Lituma nos Andes" e do mais recente romance do autor, "O Herói Discreto"], seu sentido de Justiça, de pertencimento a um lugar específico da América Latina, como é Piura [norte do Peru]. Sem ele nos sentiríamos todos menos latino-americanos", diz Aurelia Muñoz, 67, com as mãos cruzadas sobre seu exemplar de "Conversação na Catedral".

    Antes de falar a um auditório lotado, Vargas Llosa autografou exemplares por mais de uma hora. Na fila, fãs de longa data e muitos jovens. O autor encabeça a comitiva de mais de 60 autores do Peru, país homenageado nesta edição do evento —o Brasil foi o país-tema há dois anos.

    Na primeira edição da Filbo após a morte do Nobel colombiano Gabriel García Márquez —morto no último 17—, Vargas Llosa elogiou o antigo desafeto. Contou que "Ninguém Escreve ao Coronel" havia sido um dos primeiros livros de literatura latino-americana que tomou em mãos, quando vivia em Paris, e que o fez pensar que nascia uma geração de autores que colocaria o continente no mapa. "Era um livro pequeno, curto, muito lindo, onde não faltava nada nem sobrava nada."

    Mencionou Paris como a porta de entrada, então, para os autores do continente. "Lembro dos franceses boquiabertos numa palestra de Jorge Luis Borges em que falava de Shakespeare, parecia impossível para eles que alguém vindo de um lugar selvagem, da barbárie, pudesse recitar versos de Shakespeare. Hoje a América Latina está no mapa literário graças a essa geração."

    Leonardo Muñoz/Efe
    O escritor peruano Mario Vargas Llosa durante sessão de autógrafos na Feira do Livro de Bogotá, na Colômbia
    O escritor peruano Mario Vargas Llosa durante sessão de autógrafos na Feira do Livro de Bogotá

    Entrevistado pelo colombiano Juan Gabriel Vázquez, Vargas Llosa falou de forma muito dura sobre o pai, que conheceu aos 10 anos, quando retorna ao Peru, e era uma pessoa muito autoritária. "Por causa de meu pai passei a ser um amante da liberdade. Descobri que havia sido livre antes e que existia a opressão, e que deveria fazer de tudo para me livrar dela." O pai de Vargas Llosa considerava a literatura uma profissão menor e degradante, e fez de tudo para que o filho largasse a profissão, colocando-o num colégio militar. "Ele queria me curar, mas o efeito foi o inverso, porque entrar no colégio militar me fez ter mais vontade de escrever. Queria descrever aquele Peru cheio de rostos diversos. Eu primeiro escrevi cartas de amor a pedido de meus colegas. Depois me inspirei para 'A Cidade e os Cachorros' e nunca mais parei. Assim que tenho de agradecê-lo por isso", o auditório caiu na risada.

    Vargas Llosa ainda lembra esses anos difíceis como um momento em que descobriu que a literatura era um sinal de rebeldia. "Eu tinha que resistir à repressão e à autoridade e manter minha dignidade, minha soberania, por isso escrevia, ainda que às escondidas."

    Essa postura seguiu quando entrou para a universidade de San Marcos, em Lima, durante os anos da ditadura de Manuel Odría (1948-1956). "Não se podia falar de política, não se podia atuar em partidos, vivíamos no temor e na ignorância. Aprendi a odiar sistemas políticos que promovem o temor e a ignorância." Vargas Llosa acaba de chegar à Colômbia vindo de dias na Venezuela, onde apoiou os estudantes que se rebelam contra o governo de Nicolás Maduro.

    Sobre seu método de escrita, o peruano diz que continua o mesmo desde que começou. Escreve muito a princípio, cada romance sai de um rascunho que, às vezes, chega a ter três mil páginas. "Não me preocupo com estrutura, com nada, repito cenas, até que começo a editar. E sempre me lembro do bom conselho de que adjetivos são feitos para não serem usados, e vou arrancando-os do texto."

    Ao ser perguntado sobre o livro latino-americano que mais o marcou, respondeu sem hesitar que foi "Os Sertões", de Euclides da Cunha, base para seu "A Guerra do Fim do Mundo". Em seguida, deu uma explicação clara, correta e resumida de como foi o processo através do qual a República tomou o lugar da monarquia no Brasil e como esse "peculiar acordo entre militares e intelectuais" demorou a se tornar um projeto nacional. "Lá no interior da Bahia, a notícia que chegara era que o diabo tinha sido vencido e que teria de ser combatido". Contou sua viagem a Canudos e pelas 25 vilas nas quais pregou Antonio Conselheiro. "Como é que coube a um republicano convicto como era Euclides da Cunha perguntar-se: 'o que foi que nós fizemos?', ao ver aquela massa fanática levantar-se e entregar-se numa luta de morte contra a nova ordem?".

    Ao final do encontro, um inusitado incidente. Um homem levantou-se e começou a rasgar um de seus livros, perguntando qual era a relação do escritor com o ex-presidente colombiano Álvaro Uribe. Vargas Llosa o chamou de "fundamentalista", "começam rasgando livros e terminam matando gente". Depois, agradeceu ao indivíduo, dizendo que "gente como você nos animam a escrever os livros que escrevemos". Coberto de aplausos, o Nobel saiu de cena.

    A jornalista SYLVIA COLOMBO viajou a convite da InvestBogotá

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