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    Crítica: Obras do artista Ron Mueck transformam o banal em atos heroicos

    SILAS MARTÍ
    NO RIO

    06/05/2014 02h04

    É como ver um espelho, só que distorcido. No Museu de Arte Moderna do Rio, jovens casais olham para a cópia fidelíssima de um jovem casal —ela meio chateada como se acabasse de ouvir dele uma confissão desagradável.

    Uma roda se forma em torno da escultura de dois velhinhos na praia. Na multidão que enche o museu, há momentos de silêncio solene. Parece que o homem, com pelos nos braços e unhas do pé de um realismo assustador, está mesmo respirando.

    Essas figuras do artista australiano Ron Mueck, na mostra sensação do outono carioca, que já arrastou 140 mil pessoas ao MAM, chamam a atenção pela semelhança acachapante com a vida real, dos cabelos à expressão dos olhos, e os tons de pele mais do que real, perfeitos.

    Daniel Marenco/Folhapress
    'Mulher com Galhos', escultura de Ron Mueck agora no MAM do Rio
    'Mulher com Galhos', escultura de Ron Mueck agora no MAM do Rio

    Uma única diferença é a escala. Enquanto os velhinhos são gigantescos, o casal de namorados é minúsculo, como dois bonequinhos. Um jovem negro esfaqueado também é bem menor do que seria na realidade, ao contrário de um frango depenado, ali refeito em tamanho imenso.

    Se fossem em escala real, algumas delas talvez nem fossem notadas entre os visitantes, passando por gente de carne e osso tal é o realismo dos efeitos atingidos pela técnica do artista, que usa silicone, poliuretano, resina e fibra de vidro nessas obras.

    Na história da arte, Mueck, que começou criando bonecos para efeitos especiais de filmes e programas de televisão, trafega na contramão.

    Enquanto as novas tecnologias, como a fotografia e o cinema, libertaram a pintura e a escultura da obrigação de representar a realidade, dando início à arte conceitual e abstrata, aqui a tecnologia está a serviço da reprodução mais do que perfeita do real.

    E o público reage embasbacado, estupefato de ver no museu uma galeria de gente quase de verdade. O rapaz esfaqueado poderia ser mais uma vítima de assalto na esquina, os velhinhos, uma réplica dos muitos casais que vão à praia ver o pôr do sol.

    Mas Mueck é mais do que artifício. Se é fato que suas esculturas espantam pelo realismo, ele também parece comentar a brevidade da vida.

    Há certa melancolia em tornar perene o rosto de uma mãe, bebê a tiracolo, assoberbada por sacolas de compras. Ou mesmo na expressão de espanto e horror do garoto esfaqueado e na felicidade de um banhista flutuando numa piscina, quase como fotogramas de um filme incompleto.

    DITADURA DO 'SELFIE'

    Mueck rege um arsenal de truques para explicitar o mais banal da existência humana, ou melhor, congelar em ato heroico o que não passa de instantes perdidos, quase feitos para o esquecimento.

    Num momento em que a forma e a técnica estão relegadas a um segundo plano nas artes visuais, reféns de conceitos que justificam toda e qualquer obra, o artista-artesão surpreende pela robustez de seu projeto plástico.

    E consegue um feito inédito, que é fazer desacelerar um público que em geral não perde segundos diante de uma obra de arte. O fato de suas representações perfeitas de gente como a gente causarem tamanha comoção também serve de diagnóstico inquestionável da ditadura do ego em tempos de "selfie".

    RON MUECK
    QUANDO de ter. a sex., das 12h às 18h; sáb. e dom., das 11h às 19h; até 1º/6
    ONDE Museu de Arte Moderna do Rio, av. Infante Dom Henrique, 85, Rio, tel. (21) 3883-5600
    QUANTO R$ 14
    AVALIAÇÃO bom

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