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    Racionais MC's lotam show em Buenos Aires e anunciam disco de inéditas

    FELIPE GUTIERREZ
    DE BUENOS AIRES

    06/05/2014 14h03

    Em uma casa noturna com capacidade para 1.110 pessoas lotada, os Racionais MC's fizeram seu primeiro show na Argentina nesta segunda-feira (5), em um evento ligado à Feira do Livro de Buenos Aires. A participação da banda foi custeada pela Prefeitura de São Paulo. A entrada era gratuita.

    Neste ano, os Racionais MC's completam 25 anos e vão fazer uma turnê para comemorar. Além disso, em entrevista, o DJ KL Jay afirma que devem lançar um disco novo até o fim deste ano.

    Na Argentina, a banda de Mano Brown, KL Jay, Ice Blue e Edi Rock apresentou-se durante uma hora e meia, misturando músicas novas como "Cores e Valores" e "Marighella" com outras que os tornaram conhecidos, como "Homem na Estrada" e "Diário de um Detento", além de alguns hits que lançaram quando já estavam estabelecidos como o conjunto de rap mais importante do Brasil, como "Vida Loka" e "Negro Drama".

    No palco, eles ensinaram o público a fazer o gesto de "vida loka" com a mão (com o dedão, o indicador e o dedo do meio abertos, formando um "V" e um "L") e Mano Brown explicou ao público de Buenos Aires o que é "mandar um salve" ("é o que se diz quando se entra em qualquer favela de São Paulo").

    O líder dos Racionais ainda disse duas vezes que estava contente por estar na terra do Maradona, "que fez o gol com a mão".

    Já perto do fim do show, Brown pediu para que os brasileiros levantassem a mão. A maioria dos presentes da casa de shows levantou. "É, eu imaginava", disse o rapper.

    A turnê de 25 anos que começa na próxima sexta (9), na Fundição Progresso, no Rio de Janeiro.

    Em entrevista à Folha, o DJ dos Racionais MC's, KL Jay, falou sobre os planos do grupo para este ano, sobre as diferenças entre a banda hoje e em 1989, ano em que começou. Ele discorda das demonstrações de apoio ao jogador Daniel Alves, que foi alvo de racismo durante um jogo na Espanha. Para KL Jay, elas são típicas do Brasil, "pobre de espírito e racista".

    *

    Folha - Em 2014, vocês completam 25 anos de carreira. Vai ter disco novo?
    KL Jay - Esse ano tem disco de inéditas. Não vai ser um álbum, vai ser um EP [disco com menos faixas] com, sei lá, dez músicas. A gente está decidindo isso ainda. Não sei se "Marighella" será uma delas.

    O último disco de estúdio, "Nada como um Dia Após o Outro Dia", é de 2002. Por que demoraram tanto para lançar algo novo?
    Esse tempo de espera [se deve ao fato de a gente sempre ter] cuidado da banda sozinho. A estrutura fez com que a gente demorasse tanto tempo. Temos as nossas coisas pessoais, e ainda cuidávamos dos shows. Também esperamos o mundo dar essa virada com a web. A gente precisou ver o que ia haver, o que ia acontecer na cena [de rap] do Brasil, com Emicida, Criolo, Rashid, Flora Mattos. Foi um tempo também de observação e um tempo para nós mesmos.

    Os Racionais têm menos coisas a dizer hoje, 25 anos depois?
    Não, mas estamos mais maduros e temos mais cuidados ao falar e ao agir. Em 1989 [ano em que a banda começou] eu tinha 19, 20. Hoje temos mais cuidado.

    A música "Marighella" é sobre um tema histórico, portanto não retrata um momento atual. Isso indica uma desistência do papel de cronista nas letras?
    Significa um resgate da história que não foi contada e não é contada no Brasil, é um resgate de várias histórias reais. Hoje a revolução armada não faz mais sentido. Mas é um fato com o qual nós nos identificamos, de uma maneira.

    O que diferencia vocês dos rappers mais atuais, tanto em temas, como no som?
    Não vou fazer nenhuma comparação. Soa pretensioso e competitivo e eu não gosto disso. Os Racionais tentam manter o antigo e o moderno no som. A gente não quer esquecer dos valores que tínhamos que ainda servem para hoje e sem deixar de atentar para a modernidade e a renovação.

    O que o senhor ouve de rap atual?
    Como fã de rap, que é a música que resgata outros ritmos, ouço blues, jazz, música caribenha, funk dos anos 1980 e funk carioca que virou paulistano também.

    Os Racionais sempre falaram muito, nas letras, sobre racismo. "Negro Drama" é um exemplo. Esse assunto está em pauta por causa de episódios no futebol. Vocês conversaram entre vocês sobre os acontecimentos recentes, sobre o Daniel Alves e sobre o Neymar?
    É a minha opinião pessoal: o Brasil é racista. A mentalidade racista começa no Estado e vai se prolongando pelo resto da sociedade. O Neymar é um cara ingênuo. Nós, com 20 anos, tínhamos uma noção racial porque ouvíamos hip hop, que fez a gente ir atrás. Isso não foi mostrado ao Neymar. Não concordo com a campanha. É típica do Brasil, pobre de espírito e racista. A ideia dela é achar que eu, como preto, preciso ser aceito, então vou comer a banana e me assumir como macaco. Sou absolutamente contra. Para mim os racistas devem morrer —com isso eu quero dizer que a mentalidade tem que morrer. Eu não sou macaco, sou ser humano.

    De 1989 para cá, a maneira como o brasileiro é racista mudou?
    Não. É a mesma coisa.

    Não está mais disfarçada?
    Para mim é a mesma coisa. Tem que estar na rua para perceber, no ônibus, no carro. E tem que ser preto para ter propriedade para falar. Os xingamentos são os mesmos, os olhares são os mesmos. Nós ocupamos alguns lugares e somos um pouco mais respeitados. Aparecemos mais em capa de revista, apresentando programa de TV, com alguma representatividade no Congresso. Mas ainda é pouco, porque somos metade da população. Nós construímos o país, e o país nos deve muito. É uma doença, é uma mentalidade doente. Os racistas são doentes.

    Neste domingo, aconteceu a parada gay de São Paulo. Tem um verso na letra de "Capítulo 4, Versículo 3" que sempre me pareceu preconceituoso em relação aos gays: tem mano que rebola e usa até batom. É um verso homofóbico?
    Essa é a forma como você viu. Tem mano que rebola e usa até batom é fazer qualquer coisa para aparecer. E eu tenho certeza de que quando foi escrito, o tema gay nem foi pensado. Rebolar e usar até batom não remete à orientação sexual. Gay é homem que tem atração por outro homem. Não quer ser mulher. É outra coisa. Rebola e usa até batom significa que ele faz qualquer coisa para ter fama e sucesso.

    Por que demorou 25 anos para vocês fazerem o primeiro show na Argentina?
    Acho que a maneira que a gente encara o mundo mudou, a gente é mais profissional. Mas a web ajudou.

    As taxas de homicídio em São Paulo caíram, a desigualdade no Brasil caiu um pouco nos últimos anos. As letras dos Racionais nesse EP podem refletir essas mudanças?
    Não dá para falar. A gente não sabe o resultado ainda. Agora, as taxas de homicídio ainda são altas. No Rio de Janeiro, morre muito preto. É uma máquina de matar preto. É uma máquina que reflete a mentalidade dos Estados. Em São Paulo, matam muito preto. Em Salvador, em Fortaleza, em São Luis. E é o Estado o responsável por isso. Se comparar com outros países, onde tem muito menos preto, não tem isso.

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