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    Opinião: Arquiteto Lelé foi obrigado a fechar a sua fábrica de sonhos

    FERNANDO SERAPIÃO
    ESPECIAL PARA FOLHA

    22/05/2014 02h31

    No final dos anos 1970, quando trabalhava em Salvador, João Filgueiras Lima criou sua primeira fábrica de pré-moldados de concreto.

    A indústria produzia componentes para pequenas construções públicas, como abrigos de ônibus e postos policiais. Para o saneamento básico de favelas, ele percebeu que precisava de peças mais leves e passou a usar argamassa armada. Com o pé na lama, balançava os barracos, avaliando-os com seriedade: "esse fica", "esse sai".

    O simbólico episódio revela um arquiteto com formação moderna percebendo a crueldade da realidade brasileira. Para o menino pobre do subúrbio carioca que ajudou a construir Brasília era o fim da utopia: a favela era um fato e, se não havia dinheiro para derrubar tudo e dar moradia digna à massa, existia técnica para transformar o inferno em purgatório.

    Lelé mergulhou naquela técnica para resolver problemas de infraestrutura do Brasil chegando a criar obras-primas, como a rede Sarah.

    Sua produção foi a mistura improvável de Gropius com Niemeyer, da fabricação em série da Bauhaus com a graça brasileira. Foi gênio ao perceber que a argamassa armada, associada a peças metálicas leves, era a industrialização adequada ao estágio de desenvolvimento do país.

    A matriz industrial, contudo, não tirou a graça de seus projetos, coloridos e cheios de formas. Para arrematar, a temática social fez dele o arquiteto dos arquitetos.

    Ao mediar um debate entre ele e o festejado suíço Jacques Herzog, do escritório Herzog & de Meuron, no evento Arq.Futuro, não me surpreendi quando a estudantada deixou o europeu de lado para tirar foto com Lelé.

    Também não foram inesperados seus embates com políticos e empreiteiras. Como projetava e fabricava as peças, só ele dominava a técnica, esbarrando em interesses escusos que preferem construir como no século 19.

    Cruel, a lei das licitações o impediu de trabalhar. Por isso, infelizmente, teve um fim melancólico, acusado injustamente de superfaturamento de projeto: ao invés de ser aclamado como herói, terminou seus dias sem dinheiro, fechou a fábrica de sonhos e foi tratar o câncer que o assombrava há décadas.

    FERNANDO SERAPIÃO é crítico de arquitetura e editor da revista "Monolito"

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