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    Livro conta como cinco italianos mudaram o teatro no Brasil

    NELSON DE SÁ
    DE SÃO PAULO

    28/05/2014 02h44

    Italiana de Gênova, Alessandra Vannucci, 45, veio ao Brasil trabalhar com o diretor Augusto Boal (1931-2009) há 15 anos. E descobriu "essa geração de italianos que ninguém tinha pesquisado".

    O resultado são as 352 páginas de "A Missão Italiana", em que faz a biografia, como chama, dos cinco diretores que mudaram o teatro brasileiro: Adolfo Celi (1922-86), Ruggero Jacobbi (1920-81), Luciano Salce (1922-89), Flaminio Bollini Cerri (1924-78) e Gianni Ratto (1916-2005).

    Livro
    A Missão Italiana
    Alessandra Vannucci
    A Missão Italiana
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    Eles trouxeram o projeto de estabelecer um teatro da direção, não mais de grandes atores, estrelas. "E aqui eles encontraram um território que desejava a modernidade como ruptura radical com a tradição", diz Vannucci.

    Embora tenha origem em seu doutorado na PUC-RJ, ela mudou tudo. "Era a coisa mais sisuda e chata e séria do mundo", diz. "Aí decidi dar um fluxo de vida, de detalhes. Eu queria que fosse visível a impetuosidade do Zampari, que ele era careca, suava."

    O empresário Franco Zampari (1898-1966) foi quem juntou os cinco em São Paulo, em seu Teatro Brasileiro de Comédia, ao lado de atores como Cacilda Becker, Sérgio Cardoso e Tônia Carrero.

    CENSURA

    O livro detalha as paixões e os conflitos desse encontro, antes, durante e depois do TBC. O mais célebre é o relacionamento entre Celi, o diretor-artístico, e Cacilda, a principal atriz. Vannucci leu as cartas que eles trocaram, mas não pôde usá-las.

    "Elas não foram liberadas pelos herdeiros brasileiros", diz. "As 67 cartas estão lá, belíssimas. Com a lei que tem, a gente fica zelando por não ter problemas judiciais. Agora, são belíssimas, valeria a pena, mas tive que tirá-las."

    Elas foram integradas em parte à narrativa, que relata desde o primeiro encontro até a separação, quando Celi se envolve com Tônia —e se acentuam as dissidências no TBC.

    Se ficou sem as cartas, Vannucci fez outras descobertas. Uma das principais foi o regulamento do teatro, provavelmente elaborado por Celi. "É fantástico. [Mostra] os parâmetros que regraram o lançamento da modernidade em cena, num modelo que tentava disciplinar os atores."

    MALANDROS

    "A Missão Italiana" também joga luz sobre um episódio controverso, envolvendo "Ronda dos Malandros", dirigida por Jacobbi e retirada de cartaz. "Em quase todos os livros se diz que 'Ronda' foi censurada por motivos políticos. O motivo foi outro."

    A encenação remetia ao teatro de revista, popular, mas o projeto de Zampari tinha "um modelo de modernidade ligado ao realismo, que não ofenderia a plateia burguesa". A maior prova vem das montagens propostas por Celi e pelos demais e recusadas seguidamente.

    "Não haveria cena épica no TBC", diz Vannucci, que levantou a lista. "Brecht deixou de ser montado, Shakespeare também. Tem aí uma razão ideológica. Não diria política, mas ideológica. Uma visão materialista ou mais crítica da realidade poderia perturbar aquela serenidade."

    *

    Folha - Quais são as principais revelações de "A Missão Italiana"? Por exemplo, fiquei com a impressão de que foi transposta para o Brasil aquela diferença que havia entre Milão e Roma, em grande parte nas figuras de Jacobbi e Celi. É isso?

    Alessandra Vannucci - Com certeza, uma questão que o livro desvenda, não sei se revela, é um certo paralelismo com o contexto da formação deles, em que há um grupo romano e um grupo milânes, que depois vai definir o surgimento do Piccolo Teatro de Milão, um momento importante para a cena da direção na Itália. Isso vem se reproduzir no Brasil, mas num contexto que é bastante diferente, que tem uma vantagem extravagante: eles encontram aqui um mercado já procurando se estender a um público de massa e com a interação de mídias tecnológicas. Eles aqui conseguem fazer não somente teatro, como também cinema, televisão, tudo simultaneamente, nos mesmos anos. E há uma inversão de perspectiva. O que poderia ser uma relação imperialista ou colonial e que de alguma forma foi retratada assim eles próprios viam ao contrário: como provincianos que chegaram à América, que eles consideravam o lugar do futuro, onde as coisas aconteceriam.

    Mas a grande revelação do livro são os documentos internos do TBC, especialmente o regulamento, que achei com facilidade em vários dos arquivos. Esse regulamento é fantástico, para estudar o funcionamento de um teatro de equipe, os parâmetros que regraram esse lançamento da modernidade em cena, em volta de um modelo que tentava disciplinar os atores.

    Folha - Quem elaborou esse documento interno?

    Acho que foi Celi, mas não posso afirmar com certeza. Encontrei o documento no arquivo Jacobbi, então, em 1950 [quando Jacobbi entrou no TBC] o regulamento já estava lá. Só Celi poderia ter feito. Mas encontrei também no arquivo Celi, em várias lugares. E eu nunca vi em livro nenhum.

    E depois tem toda a história, ali, de conflito da Cacilda Becker. Ela entra em nova luz. Claro, a gente sabe muitos detalhes sobre ela no palco, mas agora também atrás do palco. Ela ganha um poder, que ela quis ter, de promotora da solidez profissional do TBC, que a coloca até numa situação de conflito com outros atores e com o próprio Celi. Mas ela tinha caráter, isso eu acho que mostrei bastante.

    Folha - Ao mesmo tempo, o livro não tem uma certa idolatria de Cacilda que se costuma ver aqui no Brasil. Por exemplo, você a coloca questionando muito a direção e interferindo abertamente na "Ronda dos Malandros".

    Com certeza. Aí é outra revelação. Em quase todos os livros sobre o TBC se diz que a "Ronda" foi censurada por motivos políticos, o que Ruggero nunca reivindicou, estranhamente. O motivo foi outro. Era uma questão estética.

    Folha - Mas mesmo essa questão estética tinha um fundo político.

    Com certeza. Era uma visão quase única _e Cacilda era a grande campeã dessa visão —de que em cena haveria naturalismo. E não haveria uma cena épica no TBC. Isso é demonstrado pelo repertório do TBC. Não as peças que foram sucesso, mas as que não foram montadas, que caíram. Por exemplo, Brecht deixou de ser montado, Shakespeare deixou de ser montado. A desculpa é de que eram muitos atores, mas me parece que tem ali uma razão ideológica. Não diria política, mas ideológica, de um modelo de modernidade ligado ao realismo, que não ofenderia a plateia burguesa, enquanto qualquer outro tipo de investimento, numa visão materialista ou mais crítica da realidade, poderia perturbar aquela serenidade.

    Por exemplo, esse resgate da revista, que é muito evidente nas fotografias da "Ronda", da revista brasileira mesmo, era considerado ofensivo justamente pela Cacilda, por esses atores que se consideravam uma nova linhagem de atores. Eles queriam um corte seco com a tradição anterior dos atores brasileiros.

    Folha - Mas os diretores italianos não tinham essa visão.

    Os italianos chegaram aqui com uma ideia de teatro trazida da formação deles, que era a missão, que era instalar o teatro da direção, que eles não conseguiram instalar na Itália, pelo menos nesses anos até 1948, 49. E aqui eles encontram um ambiente que desejava a modernidade como uma ruptura radical com a tradição. É uma ideia que se instala num território propício. Uma ideia meio que sem lugar, viajante, da modernidade cênica, e que se instala num território extremamente propício, que é formado pelo público, que queria ver uma coisa totalmente nova, e pelos atores, que queriam fazer algo que pudesse colocá-los num nível internacional. E esse nível internacional contrariava frontalmente a dimensão local. É um momento que mostra uma grande organicidade entre as ideias que eles trazem e o território que os acolhe.

    Folha - Mas ao mesmo tempo Jacobbi tinha, na "Ronda", um pouco da revista brasileira. E o próprio Celi, pelo que você relata no livro, tem um carinho, um desejo de fazer algo na praça Tiradentes [centro do teatro popular no Rio].

    É uma paixão desbragada, uma paixão extrema. Celi escreve em todas as cartas que adora a praça Tiradentes, que ele vai escondido. [risos] É por isso que escolhi esse estilo coloquial para o livro, com as cartas, as outras coisas que conto, que consegui introduzir. Optei por escrever assim. Esse livro era a minha tese de doutorado. Era a coisa mais sisuda e chata e séria do planeta. [risos] Aí decidi fazer assim, para o bem do leitor. Espero que ninguém se queixe, porque queria dar um fluxo de vida, de detalhes. Queria que fosse visível, sei lá, a impetuosidade do Zampari, que ele era careca, que suava, que tinhas as mãos grandes, senão a história perde toda a graça. Você não vê como ela é vivida. E se trata de viajantes, de imigrantes de certa forma. É uma arte que implica a viagem das pessoas. Com teatro, você tem que ir.

    Folha - Com o corpo.

    Com o corpo. Essas ideias se deslocaram com as pessoas. Implicaram vida, suores, encontros marcados e desmarcados, decepções amorosas, filhos que nem sabemos, sonhos e também sonhos desperdiçados... É claro que muita coisa também ficou de fora, porque ia ficar com 500 páginas, era impossível. Enfim, houve uma escolha, um corte, e tentei privilegiar ao máximo essa encenação das vidas. Li muito livro sobre os italianos e eles aparecem sempre como robôs, como se não tivessem vivido aqui 15 anos. Eu vivo aqui há mais ou menos 15 anos e sei o que significa viver no exterior. É tudo uma negociação de significados, que é profundamente enraizada na biografia. Eu queria devolver isso. É uma espécie de biografia deles, na verdade. O que me interessava eram eles, os jovens que chegam aqui com 23, 24 anos e de repente se veem catapultados nessa aventura extraordinária, que nunca teriam tido se tivessem ficado na Itália.

    Folha - Senti falta de mais Aldo Calvo.

    Aldo Calvo, você tem toda razão. Eu me comprometo a escrever uma coisa específica sobre ele. Ele tinha uma carreira absolutamente respeitada na Itália, como cenógrafo do Teatro alla Scala, de vários outros. Ele começa a trabalhar aqui como decorador, com a Fifi Assunção, mulher de Paulo Assunção, riquíssima, de grande estilo. Ele circula, desde o começo, nessa São Paulo fremente, distinta, a gente pode chamar, que é a classe dos quatrocentões paulistas que se misturam com essa imigração recente _de sucesso, claro, porque não eram os italianos pobres, não eram os carcamanos: eram os italianos que tinham feito sucesso, Matarazzo, Zampari. Essas figuras começam a dar um trabalho após o outro ao Aldo Calvo. E ele é o responsável pelo convite ao Celi, que eu conto no livro e é curiosíssimo. Ele fez um grande serviço, ele e a Evi Maltagliati, uma velha dama do teatro italiano que estava sempre no lugar certo, na hora certa. [risos] Ela encontrou Celi em Buenos Aires e, quando veio para Santos, Calvo foi visitá-la e disse, "Olha, a gente está procurando um diretor". E ela se lembrou do Celi. Sem ela, não teria tido nada disso.

    Calvo precisa de um livro com imagens, para fazer um trabalho sério. Aliás, sou uma amante do Gianni Ratto e o capítulo sobre ele é relativamente curto, mas porque eu não quero fazer nada sobre um cenógrafo sem imagens. Então, ainda quero fazer mais sobre os cenógrafos, com imagens, com fotografias. Calvo fazia aquarelas belíssimas. Ratto, sabemos, é um grande artista. Vale a pena reproduzi-las.

    Folha - Você é de que cidade?

    Gênova.

    Folha - E está há 15 anos no Brasil.

    É um vaivém. Fiz doutorado aqui na PUC. Vim para cá para trabalhar com Augusto Boal, que já conhecia de Paris, e encontrei uma forma de me manter, fazendo doutorado. Foi maravilhoso, me abriu muitas portas de pesquisa. Quando descobri que havia essa geração de italianos, que tinha vivido na década de 50, que eram importantes, que ninguém tinha pesquisado, eu falei: É para mim. Fui pesquisar e, na verdade, me estendi. Fiz uma pesquisa grande, de 150 anos de viagens teatrais entre Itália e Brasil. Já publiquei muita coisa dos atores do século 19, Adelaide Ristori, Eleonora Duse, sempre com esse tema das viagens dos artistas. E agora o projeto vai se ampliar, porque fui convidada por um pool de universidades de Roma para pesquisar a Argentina também.

    Folha - É o mesmo ambiente, na verdade.

    Eu comecei a me convencer de que essa tradição teatral tem de ser estudada fora do contexto das nações e de todos os corolários que são condicionados à ideia de nação. Porque me parece que as ideias que viajam, essas ideias teatrais que passam de um continente a outro, como por exemplo a modernidade em cena... Um exemplo bom são os pequenos teatros, que depois se tornam teatros estáveis. Essa é uma ideia, uma espécie de produto moderno, que todos os países europeus compraram. Reformaram seus palcos cênicos a partir dessa ideia, que era estética e metodológica, era um modo de trabalho também.

    Mas eu não terminei de contar. Depois do doutorado, voltei para a Itália e fiquei um tempo, escrevi muita coisa lá também, de livros etc. Agora estou no Brasil há quatro anos, fixa, porque sou professora da PUC. Agora é que deu tempo de publicar o livro. E pretendo ampliar essa pesquisa, porque realmente, admito, é uma das coisas mais interessantes que fiz na vida.

    A MISSÃO ITALIANA
    AUTORA Alessandra Vannucci
    EDITORA Perspectiva
    QUANTO R$ 55 (352 págs.)

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