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    Análise: Sem tolices e com humor, John Green não subestima leitores

    JOÃO LUÍS CECCANTINI
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    31/05/2014 02h06

    Tom Jobim costumava dizer que no Brasil, para a crítica, fazer sucesso é uma "ofensa pessoal". Se assim for, não seria de espantar que os romances do americano John Green, que resultaram num estrondoso fenômeno de vendas, venham a ser por aqui solenemente ignorados ou condenados no meio acadêmico. Isso é uma injustiça.

    A literatura de John Green não é nada tola, revelando-se superior à maior parte dos títulos da literatura para jovens atualmente em circulação, setor que vive momento de superaquecimento no mercado.

    Uma vez que não se queira cobrar de sua obra o que ela não pretende ser —literatura de ruptura, vazada em linguagem experimental—, é objeto que merece toda atenção.

    Os quatro romances de autoria exclusiva de Green —"Quem É Você, Alasca?" (2005), "O Teorema Katherine" (2006), "Cidades de Papel" (2008) e "A Culpa É das Estrelas" (2012)— inserem-se na tradição instaurada por um grande clássico americano, "O Apanhador no Campo de Centeio" (1951), de J. D. Salinger (1919-2010).

    Divulgação
    John Green, autor do livro 'A Culpa é dos Estrelas'
    John Green, autor do livro 'A Culpa é dos Estrelas'

    Ou seja, têm por fonte uma matriz respeitável. Os personagens de Green compõem uma galeria de jovens que atualizam a angústia e o espírito atormentado de Holden Caulfield, o anti-herói criado com mestria por Salinger.

    Com algum humor, mas sem enveredar pela caricatura, Green confere aos protagonistas os traços arquetípicos do "gauche", aquele que não está à vontade no mundo.

    Outro trunfo de Green é não subestimar seus leitores na escolha dos temas. Na contramão da onda higienista que assola grande parte da literatura para jovens produzida hoje, em geral ancorada no politicamente correto, Green não hesita em trazer para o primeiro plano temas "pesados", como a depressão e o suicídio.

    Para tratar desses temas, além de se valer de uma linguagem coloquial, opta por uma visada realista, evitando o escapismo, o moralismo e o tom meloso.

    A perspectiva assumida é clara: a vida é dura, muita coisa vai sair dos trilhos e o desafio é enfrentar tudo com alguma dignidade.

    O que poderia ser visto como um recurso apelativo, quem sabe voltado a seduzir os mediadores da leitura destinada a jovens (pais, professores, bibliotecários), é usado com acerto: as citações e referências literárias ou mesmo históricas e científicas.

    Rabelais e Walt Whitman, entre outros, poderiam ter sido invocados nas obras apenas como meros elementos decorativos, no intuito de conferir a elas um verniz de erudição e valor simbólico.

    Mas não é isso o que ocorre: revelam-se elementos imbricados às tramas, desempenham função narrativa importante e não há como dizer que não despertam a curiosidade do leitor.

    Em "A Culpa É das Estrelas", seu romance mais maduro, o escritor dá um passo além e insere na obra uma referência literária que é um dos principais móveis da ação narrativa.

    A protagonista, Hazel, que tem um câncer grave, é obcecada por uma obra literária, "Uma Aflição Imperial", de Peter Van Houten, e tem como uma grande meta viajar para a Holanda para conhecer o autor do livro e tentar esclarecer aspectos dessa obra que a deixam intrigada.

    Como "Uma Aflição Imperial" é uma obra de um autor inventado, inserida em outra obra de ficção, Green acabou por criar um instigante jogo de espelhos que provoca o leitor e o convida a refletir sobre a própria natureza da ficção.

    JOÃO LUÍS CECCANTINI é professor de Literatura Brasileira da UNESP/ FCL Assis

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