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    Puristas se ofendem com orquestra digital para a ópera

    MICHAEL COOPER
    DO "NEW YORK TIMES"

    18/06/2014 13h00

    Nada sobre o ciclo épico do "Anel do Nibelungo", de Wagner, tem escala modesta, mas quando um aspirante a "impresario" operístico surgiu com a ideia de encená-lo em West Hartford, Connecticut, seu plano era substituir a imensa orquestra necessária pelos sons digitais de instrumentos sampleados.

    A ideia de substituir músicos por máquinas na ópera, uma forma de arte orgulhosamente acústica que preza demais suas tradições, foi vista como sacrilégio por alguns fãs, músicos e sindicalistas, que recorreram à mídia social para denunciar o projeto e convocar boicotes.

    Isso foi seguido pelo que alguns dos cantores do elenco veem como tática de pressão: alguns deles receberam e-mails de músicos da Orquestra de Ópera Lírica de Chicago advertindo-os de que, se não abandonassem a produção, "os músicos que tocam ao vivo neste país se lembrarão de vocês pelo resto de suas carreiras e os tratarão como traidores de sua forma de arte".

    A advertência fez efeito.

    "Coincidente com minhas preocupações, minhas preocupações artísticas pessoais, escolhi me afastar", disse o tenor Robert Brubaker, que teria cantado o papel de Mime, pelo qual ele foi elogiado na Metropolitan Opera, em entrevista por telefone esta semana, de Barcelona, Espanha. "Mas ser ameaçado por outros artistas me incomoda", ele acrescentou.

    Beatriz Schiller/Metropolitan Opera/The New York Times
    O tenor Robert Brubaker apresenta 'Siegfried' no Metropolitan Opera
    O tenor Robert Brubaker apresenta 'Siegfried' no Metropolitan Opera

    O conflito deixou alguns jovens cantores do elenco, que ainda não se tornaram astros como Brubaker e estão apenas começando suas trajetórias no difícil ambiente da ópera, angustiados diante da escolha entre aproveitar essa oportunidade de trabalho, sob o risco de encolerizar os colegas, ou aceitar o argumento de que a música digital é anátema para sua profissão e abandonar os papéis que conquistaram com muito esforço.

    Por sob a superfície, existe um medo profundo dos músicos profissionais quanto ao seu ganha-pão —um reflexo da perturbação que a revolução digital já causou nos ramos da publicação de livros, jornalismo, publicidade e música gravada.

    As questões despertadas pela chamada música virtual levaram o sindicato dos músicos a fazer piquetes em teatros da Broadway, mais de uma década atrás; continuaram a borbulhar diante das companhias de dança que recorrem a música gravada em lugar de orquestras; e levaram uma pequena companhia de ópera de Brooklyn a cancelar seus planos de usar música eletrônica, uma década atrás, depois de protestos.

    Encenar o ciclo do "Anel do Nibelungo" em Connecticut com uma orquestra digital é o sonho de Charles Goldstein, músico e aspirante a impresario operístico que no passado fez parte do coral da Metropolitan Opera e fundou o Hartford Wagner Festival, com a ideia de que um dia Connecticut se torne o único lugar do mundo, exceto Bayreuth, na Alemanha, a encenar o ciclo completo do "Anel do Nibelungo" a cada ano.

    Ele argumentou que não haveria perda de trabalho para músicos porque, desde o começo, não planejava usar músicos para acompanhar os cantores ao vivo.

    Os altos custos de encenar uma ópera se tornaram um desafio tanto para as pequenas quanto para as grandes companhias, nos últimos anos. A Ópera Municipal de Nova York fechou as portas no ano passado, a Ópera de San Diego quase teve de fechar e o Connecticut perdeu sua companhia estadual, a Connecticut Opera, em 2009. A Metropolitan Opera está buscando cortar custos em contenciosas negociações trabalhistas.

    "As pequenas companhias simplesmente não podem arcar com o custo de contratar 80, 90 ou 100 músicos para encenar suas produções, e é por isso que tantas das pequenas companhias usam um piano ou um par de pianos", disse Goldstein em entrevista.

    Ele disse que vinha experimentando com a ideia de uma orquestra digital desde 1999.

    "Eu tinha a ideia de que as pequenas companhias locais, em lugar de trabalhar com dois pianos, poderiam usar alguma forma de som digital, para realizar pequenas produções", ele disse.

    Depois de experimentar sintetizadores e considerá-los insatisfatórios, ele comprou acesso a algo chamado de Biblioteca Sinfônica de Viena, uma coleção de sons orquestrais sampleados. Desde 2005, ele vem inserindo cada nota das óperas do ciclo do "Anel do Nibelungo" no software musical.

    Colaborou com os cantores para selecionar os tempos das árias. Quando ele encenar "Das Rheingold", em agosto, instalará 24 alto-falantes para imitar a posição dos instrumentos no poço da orquestra: os alto-falantes dos violinos estarão voltados para cima, enquanto o das trompas ficará voltado para trás.

    Mas as reações adversas foram ferozes e se estenderam a todo o país. Tino Gagliardi, presidente da divisão 802 da Federação Americana de Músicos, em Nova York, comparou a ideia a um karaokê operístico.

    "Você está brincando?", ele disse em entrevista. "Por algum motivo, eles acham que uma apresentação aceitável de grande ópera pode ser realizada sem músicos".

    Joseph Messina, presidente da divisão 400 da federação, em Connecticut, perguntou: "Se teremos uma orquestra computadorizada, por que não colocar robôs nas cadeiras da plateia?"

    Alguns cantores do elenco se deixaram abalar pelos e-mails que começaram a receber, incluindo uma mensagem assinada pelos "músicos da Orquestra de Ópera Lírica de Chicago", alertando que "a participação nesse monstruoso conceito de uma orquestra digital está sendo comunicada a todos os músicos das grandes orquestras de ópera no país".

    Os protestos incomodaram os cantores. Brubaker, o tenor que decidiu abandonar o projeto esta semana, disse que ele já tinha reservas quanto à ideia desde o começo, mas que havia assinado porque era uma oportunidade de encenar uma ópera em um Estado que perdeu sua companhia lírica, porque o convite veio de um amigo da universidade, e pelo que ele define como "espírito de aventura".

    Mas Brubaker se incomoda com o tom do e-mail enviado ao elenco.

    "Acredito na liberdade de expressão", ele disse. "Acredito que os artistas que se sentem ameaçados podem e devem dizer o que sentem. Mas ameaçar outros artistas pessoalmente para que abandonem trabalhos e cachês —o que pode ser uma questão séria para alguns artistas mais jovens— não acho que isso seja correto".

    A carta de Chicago foi escrita por Mark Brandfonbrener, violoncelista na Orquestra de Ópera Lírica de Chicago, que disse que sua intenção não havia sido a de ameaçar ninguém, mas a de envergonhar as pessoas e levá-las a reconsiderar sua participação. Ele afirmou que pode ter exagerado sua autoridade e que a carta não deveria ter se representado como pronunciamento de toda a orquestra.

    "Escrevi a carta porque fiquei irritado por alguém desfigurar essa obra de arte", disse Brandfonbrener, que já tocou nas óperas do ciclo do "Anel do Nibelungo". "Para mim, é como alguém jogar uma lata de tinta em uma obra de arte no museu".

    Goldstein, fundador do festival, não recebeu o e-mail que Brubaker enviou para cancelar seu contrato - o cancelamento de contratos é uma parte importante da trama de "Rheingold" -, e só foi informado a respeito quando o repórter perguntou sobre o assunto. Mas ele afirmou que nenhum outro cantor abandonou o projeto.

    "Vamos continuar", ele disse.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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