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    Mostra em NY explora evolução do conceito de 'gênio' ao longo dos anos

    WILLIAM GRIMES
    DO 'NEW YORK TIMES'

    23/06/2014 13h09

    O Museu e Biblioteca Morgan em geral não exibe lixo em suas paredes, mas há exceções. Entre os quase 60 livros, manuscritos e objetos raros que compõem a mostra "Marks of Genius: Treasures from the Bodleian Library", fica uma constelação de papiros de tom cáqui recuperados um século atrás de um antigo depósito de lixo na cidade desaparecida de Oxyrhynchus, no Egito.

    Ao longo dos anos, as escavações no local recuperaram formulários de recenseamento, faturas, correspondência burocrática e ocasionais achados literários —no caso em questão, um fragmento de um poema de Safo, inscrito em grego no século 2 DC, parte do primeiro dos nove livros atribuídos à poeta.

    Os fragmentos de Safo oferecem apenas um dos muitos momentos de deslumbramento que a mostra, em cartaz até o dia 14 de setembro, é capaz de propiciar. Ela explora e celebra o conceito do gênio da maneira pela qual ele evoluiu ao longo dos milênios, usando alguns dos mais elevados textos já publicados: a Carta Magna, o First Folio das peças de Shakespeare, "Elementos" de Euclides e "Principa Mathematica" de Newton.

    Em declarações à imprensa antes da abertura da mostra, Richard Ovenden, indicado em fevereiro para supervisionar a biblioteca Bodleian, a principal divisão de pesquisa da Universidade de Oxford e uma das mais antigas bibliotecas da Europa, definiu as obras cedidas para a mostra como "o melhor grupo de peças que a biblioteca permitiu que circulassem em 400 anos".

    Emon Hassan/The New York Times
    Um souvenir ilustrado por Felix Mendelssohn, em exibição na Morgan Library and Museum
    Um souvenir ilustrado por Felix Mendelssohn, em exibição no Museu da Biblioteca Morgan

    Isso parece momentoso, ou até ligeiramente ameaçador. O peso da história pode ser difícil de carregar, e um visitante médio da mostra não terá assim tanta reverência a oferecer, antes que seu ressentimento termine despertado.

    Para mim, o momento chegou com os textos científicos mencionados acima, exibidos em companhia de uma edição da "Geografia", de Ptolomeu, datada do século 15, e de um livro sobre constelações publicado no século 12 com base nas observações de Abd al-Rahman al-Sufi, astrônomo da corte de Isfahan, na Pérsia, no século 10.

    Para alguns de nós, a exposição prolongada a um gênio científico incandescente desperta memórias de derrotas diante da força bruta da geometria e do cálculo. As obras imortais de Euclides e Newton, em suas belas edições e encadernações, não passam, afinal, de livros de matemática.

    Essa é uma reação puramente pessoal, mas inevitável em qualquer exposição que consista de pontos altos ininterruptos, um Himalaia das realizações humanas.

    Considere a partitura do regente para o "Messias", de Handel. Sim, dá vida nova ao coração. Eis as notas mesmas que os olhos do compositor contemplaram quando, sentado ao cravo, ele ensaiava a orquestra e cantores para a estreia da peça em Dublin, em 13 de abril de 1742.

    E ao mesmo tempo um pensamento maldoso interfere, como que a contragosto. Não seria hora de concedermos a essa obra-prima um longo descanso, permitir que se recupere dos anos de abuso sofridos por obra de amadores entusiastas que surgem a cada Natal para oferecer um equivalente musical da ola?

    Emon Hassan/The New York Times
    Fragmentos da poesia de Safo, exibidos no Morgan Library and Museum
    Medalhão com mechas de cabelo de Mary Shelley e Percy Bysshe Shelley, exibidos na Morgan

    Isso posto, a emoção esmagadora que as obras da mostra despertam é a de uma admiração indisfarçada. Dos quatro cantos do planeta, a Bodleian reuniu obras de beleza inefável e as organizou, se é que se pode usar o termo, engenhosamente.

    Também variou a mistura, salpicando tesouros menores e inesperados aqui e acolá —por exemplo um medalhão bivalve contendo cachos de cabelos do poeta Percy Bysshe Shelley e de sua mulher Mary Shelley, a autora de "Frankenstein"— para deliciar os olhares e acalentar a imaginação. A exposição tem senso de grandeza mas também uma gotinha de fantasia.

    Ainda que os objetos em exposição caibam com facilidade em uma sala compacta, "Marks of Genius" é uma mostra para quem gosta de perambular. A alguns poucos passos da Carta Magna, um impressionante documento em pergaminho com dois selos pendentes, uma pequena joia aguarda o visitante: uma partitura de "Schilflied", de Mendelssohn, produzida para ser dada como presente.

    Mendelssohn, um ávido artista amador, escreveu a composição à mão em uma partitura para dar a um amigo, e a decorou com uma romântica aquarela que mostrava a cena descrita nos primeiros versos da canção, de autoria do poeta Nikolas Lenau: "Na superfície plácida do lago repousam os raios loiros da Lua".

    A partitura é parte de uma seção intitulada "um toque de gênio", que expõe de mais perto as exaltadas mentes que respondem pelo conteúdo da mostra ao personalizar seu trabalho. John Donne, em uma letra miúda e precisa, envia uma carta em verso a duas aristocratas. A rainha Elizabeth 1ª, aos 11 anos, escreve uma dedicatória em um livro que seria presenteado à sua então madrasta Catherine Parr. É sua tradução de um poema religioso francês, em caligrafia um tanto precária. Então como hoje, valia a intenção.

    Em uma sala repleta de iluminuras medievais e encadernações renascentistas suntuosas, é chocante encontrar uma simples folha datilografada, um discurso do primeiro-ministro britânico Harold Macmillan ao Parlamento sul-africano em 1960. A consciência nacional, ele advertia, estava despertando em toda a África, e antigas colônias começavam a exigir seus direitos. Ele acrescentou, à mão, as palavras que chocariam seus espectadores: "O vento da mudança está varrendo o continente".

    O discurso de Macmillan é apresentado deliberadamente ao lado de um discurso de William Wilberforce ao Parlamento britânico em 1822, no qual ele alegava que a escravidão não deveria ser adotada nas colônias britânicas no sul da África.

    Emon Hassan/The New York Times
    Fragmentos de poesia de Safo, exibidos no Museu da Biblioteca Morgan
    Fragmentos de poesia de Safo, exibidos no Museu da Biblioteca Morgan

    "Marks of Genius" dedicou muito esforço a respeitar seu tema. Stephen Hebron, o curador da Bodleian que organizou a mostra, traça cuidadosamente o mutável significado da palavra gênio desde a antiguidade, em um ensaio conciso mas abrangente publicado no catálogo. Para fazer justiça ao seu avultado tema, ele organizou as peças expostas em setores temáticos.

    O "Mapa da Virgínia" (1612), do capitão John Smith, aparece na seção "o gênio do lugar". Já a seção "os patronos do gênio" reúne peças produzidas de encomenda e muito variadas, da Bíblia de Kennicott, produzida na Espanha em 1476, a uma miniatura ilustrada do Bhagavad Gita que se parece com um trecho de película cinematográfica, passando por "Les Proverbes de Salomon", uma representação manuscrita dos provérbios bíblicos escrita por Esther Inglis, uma escocesa do século 16 que enfrentava dificuldades materiais e havia desenvolvido o hábito de enviar amostras de sua belíssima caligrafia a patronos nobres, na esperança de obter recompensa monetária.

    Essa delicada arquitetura conceitual pode muitas vezes parecer supérflua. As obras em exibição o mais das vezes têm apelo próprio, não importa que ideia pretendessem expressar originalmente. Como acontece com muita frequência em mostras cuidadosamente organizadas, as mentes e os olhares seguem seus próprios rumos.

    A "Regula Sancti Benedict", as normas da ordem monástica beneditina, inscritas em um livro inglês do começo do século 8, ficam na seção "sobre os ombros de gigantes", devido ao seu status como principal código monástico europeu. Isso é realmente importante. Mas o mais provável é que os visitantes se deixem deslumbrar igualmente pela letra maravilhosa usada no livro, uma mistura de caracteres romanos e celtas conhecida como "uncial inglês", e que parece saltar da página.

    O mesmo se aplica ao elefante pensativo apertadinho no canto de uma página da "Historia Naturale" de Plínio; o pássaro cor de coral que mergulha dos céus no "Ashmole Bestiary", do século 13; e o dragão celestial de "Astronomicum Caesareum" [astronomia dos césares], de Peter Apian.

    O trabalho de Apian, que consta da seção "o gênio da impressão", nos lembra de que gênio pode ser uma coisa fugaz. O livro é um glorioso compêndio de erros, uma apresentação elaborada do sistema geocêntrico desenvolvido por Ptolomeu, que dispensa as habituais tabelas matemáticas e em lugar disso assume uma inteligente forma gráfica, com discos em rotação, ou "volvelles", para mostrar os movimentos planetários, os eclipses solares e lunares, horóscopos e portentos.

    No Morgan, o livro está aberto na página de uma fantasiosa volvelle na qual um dragão verde com asas alaranjadas, representando a constelação do Dragão, serve como marcador para indicar eclipses solares e lunares.

    O livro saiu em um momento espetacularmente inconveniente, ainda que tenha valido a Apian a posição de astrônomo na corte do imperador Carlos 5º, do Sacro Império Romano-Germânico, e mais tarde o título de conde palatino do império. Três anos depois de sua publicação, em 1540, "De Revolutionibus Orbium Coelestium" [da revolução das esferas celestes], de Copérnico, colocaria o sol no centro do sistema solar e um chapéu de burro na cabeça de Ptolomeu.

    O que prova que o gênio pode ser uma licença temporária, conferida por uma era e revogada na seguinte. Mas as volvelles continuam a girar.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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