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    Crítica: Linguagem é frágil para segurar trama de Míriam Leitão

    LUÍS AUGUSTO FISCHER
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    28/06/2014 02h37

    A forma romance tem entre seus maiores méritos a capacidade de acolher a variedade da vida. Santos e canalhas, doutores e charlatães, gente que sabe falar bem e gente afásica, passado e presente, tudo cabe.

    Uma família de elite em 2014 pode se reunir numa fazenda mineira, para celebrar os 88 anos da mãe e avó, revivendo conflitos políticos e psicológicos antigos —e eles podem compartilhar as páginas com uma família de escravos que, 150 anos antes, vivia momentos de intenso drama.

    A família de elite está cindida, em nosso presente, porque o primogênito teve alguma participação no período mais duro do regime militar, enquanto uma irmã estava presa, sendo torturada, e o pai de sua futura filha era morto nos mesmos porões. Outra irmã enriqueceu, e o mais novo optou pelo caminho das artes, sem sucesso.

    Divulgação/Editora Intrínseca
    Míriam Leitão, autora do romance 'Tempos Extremos', da editora Intrínseca
    Míriam Leitão, autora do romance 'Tempos Extremos', da editora Intrínseca

    A família de escravos, lá por 1850, está cindida porque o filho quer conquistar a liberdade com luta, ao passo que sua irmã imagina haver saída mediante negociação com seus donos.

    O romance de Míriam Leitão se estrutura entre essas duas experiências amargas da história brasileira. A mediar os tempos está a filha daquele casal militante, centro de amarração ético, histórico, literário do livro, que traz o mérito de uma boa engenharia narrativa, tramada sobre matéria relevante, mas carrega defeitos notáveis.

    No varejo, há pequenas inconsistências a todo momento. Há excesso de didatismo do narrador, que redunda demais, fazendo o conjunto parecer a escrita de uma telenovela brasileira ou de filme secundário norte-americano.

    Há fragilidades de escrita (a paragrafação parece aleatória, há momentos frágeis de discurso indireto livre), imprecisões de linguagem, forçadas de barra e falta de verossimilhança aqui e ali.

    Livro
    Tempos Extremos
    Miriam Leitão
    Tempos Extremos
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    No atacado, o romance perde força em momentos-chave. Ao fundo, uma fragilidade está no fato de que a fazenda, palco de quase toda ação relevante, não é da família central, ao contrário do que tudo sugere -parecemos estar diante de uma tradição patriarcal ancestral, mas caímos na realidade de que a fazenda foi adquirida pela nova-rica irmã financista, poucos anos antes!

    Além disso, mesmo nos melhores momentos do romance —há três de grande força histórica e boa sugestão dramática—, o leitor percebe que a linguagem não consegue dar boa conta da trama e, mais ainda, da psicologia dos personagens. Romance é uma forma aberta, mas tem suas exigências mínimas.

    Se Hitchcock estava certo ao observar que excelentes filmes nascem de literatura secundária, talvez estejamos aqui em presença de um caso futuroso.

    LUÍS AUGUSTO FISCHER é professor de literatura na UFRGS e autor de "Filosofia Mínima" (Arquipélago Editorial).

    TEMPOS EXTREMOS
    AUTORA Míriam Leitão
    EDITORA Intrínseca
    QUANTO R$ 24,90 (272 págs.)
    AVALIAÇÃO ruim

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