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    Crítica: Autor de 'Paixão' escreve após aprender lições de Joyce e Faulkner

    MARCELO O. DANTAS
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    02/08/2014 02h26

    "A Paixão", do romancista e filósofo português Almeida Faria, é para quem gosta de literatura e não teme ser por ela desafiado. A narrativa polifônica e a linguagem fortemente poética nos chamam ao recolhimento, à reflexão, ao silêncio –à degustação lenta e sacramental do verbo.

    A história se passa em um único dia: manhã, tarde e noite de Sexta-feira da Paixão. Estamos em um vilarejo típico do Alentejo, no início dos anos 1960. Portugal modorra sob o regime salazarista.

    Nesse país parado no tempo, as terras alentejanas, com seus resquícios feudais, representam o que há de mais atrasado e decadente. Nada parece mover-se. Porém uma muda revolta cresce, como tênue fagulha prestes a rebentar em incêndio.

    Livro
    A Paixão
    Almeida Farias
    A Paixão
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    Pela manhã, acompanhamos o despertar de uma família senhorial: os pais, quatro filhos, uma filha, duas criadas e um velho empregado. Pequenos afazeres, restos de sonhos e breves reminiscências se mesclam, nesse momento entre o sono e a vigília.

    Distintas vozes narrativas e olhares se permeiam, tendo como traço condutor a desesperança do presente e a angústia mórbida quanto ao futuro. Mergulhamos na dor resignada das mulheres, na serena espera pela morte do ancião, nos devaneios e paixões dos filhos, na virilidade opressora da autoridade paterna.

    Um conflito edipiano se anuncia, como imagem de toda uma juventude ansiosa por livrar-se do ditador.

    Ao início da tarde, começam a arder as estruturas corroídas do vilarejo-país. À noite, encontramos a morte, mas também uma primeira ruptura, capaz de dar ensejo à acalentada ressurreição.

    O destino das personagens que vemos lentamente emergir do sono em "A Paixão" irá desdobrar-se nos volumes subsequentes da "Tetralogia Lusitana" do autor: "Cortes" (1978), "Lusitânia" (1980) e "Cavaleiro Andante" (1983).

    Almeida Faria escreveu este seu segundo romance tendo absorvido lições de Joyce, Faulkner e Vergílio Ferreira. Passados quase 50 anos da publicação, o contexto político que lhe era subjacente desfez-se; restou a qualidade narrativa e o retrato pungente de um Alentejo atemporal, que recorda o Nordeste brasileiro.

    Um livro para quem ama a escrita e traz na alma a paixão pela língua portuguesa.

    MARCELO O. DANTAS é escritor e diplomata

    A PAIXÃO
    AUTOR Almeida de Faria
    EDITORA Cosac Naify
    QUANTO R$ 44,90 (224 págs.)
    AVALIAÇÃO ótimo

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