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    Rússia é condenada à tragédia, diz diretor Aleksandr Sokurov

    LUCAS NEVES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM LOCARNO (SUÍÇA)

    16/08/2014 02h28

    Principal cineasta russo da atualidade, Aleksandr Sokurov, 63, diz que gigantes territoriais como seu país, a China e os EUA "estão condenados a causar danos a outros, mesmo que involuntariamente". Para ele, só a liquidação dos arsenais nucleares pode quebrar essa sina.

    O diretor de "Fausto" (2011) é uma das vozes mais ruidosas de contestação a Vladimir Putin. Em fevereiro, lançou carta aberta ao presidente dizendo-se "desesperado" ao ver servidores defenderem "discriminação, perseguição e morte" de compatriotas.

    Há dois meses, voltou à carga, pedindo a liberação dos presos políticos no país.

    Divulgação
    Cineasta russo Aleksandr Sokurov, diretor de 'Arca Russa' (2002), no Festival de Cinema de Locarno
    Cineasta russo Aleksandr Sokurov, diretor de 'Arca Russa' (2002), no Festival de Cinema de Locarno

    Mas nem só de espinhos é a relação com o Kremlin. Alguns anos atrás, ele pediu a Putin (e recebeu) verba para as filmagens de "Fausto".

    O que não fez dele um simpatizante governista. "Não sei o que nos espera", afirma à Folha em Locarno, onde foi apresentar curtas-metragens dirigidos por seus alunos.

    Leia a seguir os principais trechos da conversa.

    *

    Folha - Em sua "tetralogia do poder", o sr. fez retratos dramatizados da intimidade de Lênin, Hiroito e Hitler. Como filmaria a intimidade de Vladimir Putin?
    Aleksandr Sokurov - [sorri] Nunca tive esse desejo latente... mas se me ocorresse uma ideia, acho que teria toda liberdade. Estive com Putin várias vezes. Não tenho medo de conversar com os poderosos. Eles são iguais a nós, talvez até mais humanos. São as pessoas menos livres do mundo. Todo homem político carrega uma ânsia: como será o amanhã? Dormir toda noite com esse pesadelo é algo que não desejo a ninguém.

    E o que amanhã reserva para Putin, considerando-se a crise na Ucrânia e as sanções ocidentais à Rússia?
    Países enormes como a Rússia, os EUA e a China estão condenados à tragédia, a causar danos a outros, mesmo que involuntariamente. Para evitar isso, é preciso destruir os arsenais nucleares. Se na ciência fizemos avanços notáveis, na política ainda estamos na Idade Média. É hora de reeducar os políticos. Para aprenderem algo, seria preciso deportá-los para o Saara e fazê-los viver à base de água e comida escassos [risos].

    Em fevereiro, o sr. lançou carta aberta ao presidente em defesa da liberdade de expressão e da tolerância na Rússia, após o corte do sinal de um canal de TV independente. Quão livre é um artista no país hoje?
    Essa carta não resultou em nada. A situação é difícil. Estamos tentando convencer o presidente de que não pode seguir a política atual. Não sei o que nos espera, porque os índices de aprovação ao governo estão em alta, e a oposição, enfraquecida. Temo que, no futuro, não exista mais contestação, porque todas as instâncias de apelação terão sido fechadas. Há um grupo pequeno de ricos na Rússia que teme mudanças políticas, não quer uma sociedade aberta, que acabaria com suas negociatas. É uma questão menos política do que de interesse econômico.

    O sr. adaptou obras de Platonov, Goëthe, Flaubert e Dostoiévski. Também já se definiu como "mais literário do que cinematográfico". O cinema deve andar a reboque da literatura?
    Há uma enorme distância entre literatura e cinema. É impossível levar à tela o que está escrito. Tudo o que Shakespeare queria dizer já está lá, no papel, não precisa de explicação. Para fazer cinema, é preciso começar sem palavras. Ao rodarmos um filme, surge algo diferente do que está no roteiro. Se estamos fazendo um Shakespeare, não é em "King Lear" que a filmagem vai resultar, pois a palavra diz algo, mas os elementos visuais, outra coisa. A palavra é um homem livre, enquanto a imagem tem duração, limite, é um homem aprisionado.

    Então a literatura é sempre maior do que o cinema?
    As histórias criadas por escritores são mais sólidas. Os enredos de Bernard Shaw (1856-1950), William Faulkner (1897-1962) ou Charles Dickens (1812-1870) são atemporais. O cinema como arte é uma criança pequena que precisa ser acompanhada por um adulto. Por isso, as tramas testadas pelo tempo são uma boa base para ele, evitam alguns erros. E um cineasta comete muitos erros. Há grandes músicos e escritores, mas não grandes cineastas.

    O sr. acha mesmo? Para ficar nos russos, não poderíamos falar em Sergei Eisenstein, Andrei Tarkóvski [que apadrinhou Sokurov]?
    Não há grandes no cinema. Não temos base suficiente de comparação, trata-se de uma arte recente. Comparemos cineastas a médicos. Todos propagandeiam ter o melhor método para curar os pacientes. Mas, no cinema, a doença não vai embora porque cada um acredita ser o mais capacitado e se isola em sua sabedoria. Ninguém quer unir forças, não há ainda uma linguagem comum do cinema. E dá para imaginar a medicina sem o latim?

    O que pode adiantar sobre seu novo trabalho, ambientado na 2ª Guerra?
    É sobre a situação em Paris em 1942, durante a Ocupação, sobre o que aconteceu com a arte e a cultura do país. Mostra como Paris se salvou da destruição. É o oposto do que houve muito mais recentemente [em 2003, durante a Guerra do Iraque], com o Museu Nacional de Antiguidades, em Bagdá, talvez à época o mais importante do mundo em tesouros da Mesopotâmia. Mas o Exército americano não estava interessado em salvá-lo, observou passivamente os saques ao acervo.

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