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    Depoimento: 'Antônio Ermírio entrou no teatro pelos fundos'

    DE SÃO PAULO

    31/08/2014 02h50

    Quando o dramaturgo e ator Marcos Caruso recebeu um convite para almoçar com o empresário Antonio Ermírio de Moraes (1928-2014), não entendeu nada.

    O ano era 1994, e desse almoço saiu a parceria que resultou na primeira peça do presidente de honra da Votorantim, "Brasil S.A.", que estreou em 96, dirigida por Caruso. Moraes escreveu mais duas peças, "S.O.S Brasil" (1999) e "Acorda Brasil" (2006).

    Caruso conta à Folha como foi trabalhar com o homem "do cimento", que era também "do teatro". (IARA BIDERMAN)

    *

    "Eu só tinha estado com Antônio Ermírio uma vez, em 86, quando estava em cartaz com "Sua Excelência, o Candidato". Ele concorria ao Governo do Estado, foi ver a peça, tiramos fotos juntos, mas não passou disso. Em 94, quando um assessor dele me ligou para marcar um almoço, fiquei curioso. A primeira coisa que pensei foi que ele queria patrocinar uma peça minha.

    Marcamos no restaurante do hotel Ca'd'oro, onde ele almoçava todas as sextas-feiras, às 12h15 em ponto. Durante o almoço falamos de economia, política, de tudo. Mas só no cafezinho ele me contou que tinha escrito uma peça e queria que eu dirigisse. Eu disse que queria ler a peça antes de responder. Quando cheguei em casa, o texto já estava lá.

    Eu li. Tinha algumas situações boas, personagens, conflitos, mas parecia mais uma palestra para a Fiesp.

    Marcos Caruso/Arquivo pessoal
    Antonio Ermírio de Moraes, Marcos Caruso, o ator Eurico Martins e Regina Moraes no camarim de 'Sua Excelência, o Candidato', em 1986
    Antonio Ermírio de Moraes, Marcos Caruso, o ator Eurico Martins e Regina Moraes, em 1986

    Marquei outro almoço, sexta-feira, às 12h15, no Ca'd'oro. Pensei: "Tenho que ser absolutamente honesto com este homem".

    E tive uma inspiração na hora de falar. Fiz uma pergunta: "Se eu fabricasse cimento em meu quintal e quisesse construir uma ponte, o que aconteceria?". Ele me respondeu: "Talvez essa ponte não tivesse estrutura suficiente para ficar de pé".

    Foi quando expliquei que era isso que estava acontecendo com a peça que ele tinha escrito. E que, do mesmo jeito que o sr. Antônio poderia me dar a fórmula para construir uma ponte, eu poderia lhe ensinar a fórmula para o fazer uma peça.

    Ele parou, me olhou e perguntou de onde começaríamos. Do zero.

    Começamos a nos encontrar, eu fazia ele escrever cenas. Não escrevi uma linha, fui só o provocador.

    Ele queria me pagar por aqueles encontros como se fossem aulas, pediu para um assessor me perguntar quanto custariam. Respondi que conversaria pessoalmente sobre isso e marcamos um novo almoço, sexta-feira, 12h15 no Ca'd'Oro.

    No encontro, eu lhe expliquei: "Se eu cobrar 10 mil, o sr. paga, se cobrar 100 mil, paga, se cobrar 1 milhão, também. Então não vou cobrar nada, porque quanto mais o senhor pagar, mais vai mandar em mim e sou eu quem tem que mandar nesse caso. Quando montar a peça recebo, cobrando o preço do mercado.

    E foi assim que ficamos seis meses trabalhando, duas vezes por semana, no escritório, na casa dele. Na Votorantim os assessores estranhavam, porque ele era conhecido por ter reuniões rapidíssimas, e comigo ficava duas, três horas na sala. E empolgadíssimo. O professor José Pastore foi muito importante nos nossos encontros.

    Isso resultou na peça "Brasil S.A".

    Quando começamos a montar, ele queria alugar teatro inteiro para ensaiar, comprar os móveis para o cenário. Eu disse que não era assim que funcionava, a gente alugava sala (geralmente um pulgueiro), fazia permuta para o cenário. Queria que Antônio Ermírio entrasse no teatro pela porta dos fundos, entendesse como as coisas funcionam.

    Ele entrou no espírito da coisa e se encantou de tal maneira que um dia cheguei ao ensaio e ele estava agachado, com fita crepe na mão, para fazer as marcações do palco.

    Na estreia, dei um beijo no Antônio Ermírio em cena, diante de uma plateia que era o PIB nacional. Falei que era o batismo dele no teatro.

    Lenise Pinheiro/Folhapress
    Elenco da peca 'Brasil S.A.' no Teatro Procópio Ferreira, em foto de 1996
    Elenco da peca 'Brasil S.A.' no Teatro Procópio Ferreira, em foto de 1996

    No dia seguinte, fui almoçar na casa dele e perguntei para a Regina [mulher do empresário] se tinha feito mal em beijá-lo diante de uma plateia de 600 pessoas. Foi quando ele entrou na sala e disse: "Obrigado por ter vindo almoçar. Mas antes quero te dar um beijo", e me beijou ali, diante de sua mulher.

    E eu disse que ele tinha me enganado. Eu pensava que ele era um homem frio como alumínio e duro como cimento, mas descobri que era extremamente bem-humorado, maleável. Não tinha a dureza que passava para os outros. E tinha conseguido o que queria com o teatro, tocar as pessoas com seu texto.

    A partir daí convivemos de quinta a domingo, ele ia todas as noites ao teatro. Mudou sua rotina. Acordava às 5h, mas ficava até o fim da peça e saía para jantar com o elenco.

    Ele foi um homem que ajudou o teatro como um todo.

    Quando eu era presidente da Apetesp [Associação dos Produtores de Espetáculos Teatrais do Estado de São Paulo], o teatro Ruth Escobar, que pertencia à associação, correu o risco de fechar por não ter elevador para cadeirantes. Antônio Ermírio deu o elevador de presente.

    Quando o teatro Maria Della Costa estava correndo risco de pegar fogo, ele armou uma reunião e juntou os representantes do prefeito Maluf, do governador Mário Covas e do presidente Fernando Henrique Cardoso, e o problema foi resolvido.

    Tenho orgulho de ter sido escolhido para trabalhar com ele. Perguntei-lhe por que eu, e ele disse que tinha feito pesquisas –era um homem de estatísticas– e viu que eu tinha quatro peças em cartaz, em uma delas eu atuava e, ao mesmo tempo, estava dirigindo a Beatriz Segall e a Dercy Gonçalves. Ele deve ter pensado `esse cara é como eu, faz 50 coisas ao mesmo tempo'."

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