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    Ativistas fazem campanhas contra o uso de cocares em festivais de música

    DORIAN LYNSKEY
    DO "GUARDIAN"

    15/09/2014 13h21

    O direito de se vestir como idiota é um princípio fundamental dos festivais, mas no festival de música eletrônica Bass Coast que aconteceu em Colúmbia Britânica (Canadá) em agosto, um tipo específico de idiota não será bem-vindo. Na semana passada os organizadores anunciaram que os cocares de penas dos índios americanos, também conhecidos como cocares de guerra, não serão permitidos no local.

    "Entendemos a atração dos cocares", eles escreveram na página do festival no Facebook. "A estética deles é magnífica. Mas eles não podem ser desvinculados de seu significado espiritual, cultural e estético. O festival Bass Coast acontece em terras indígenas. Respeitamos a dignidade do povo indígena."

    A cobertura dada ao anúncio do festival foi tão reveladora quanto a própria decisão. No verão passado outro festival canadense, o Tall Trees, tomou medida semelhante, mas o fato não virou notícia internacional. A proibição no Bass Coast se deu em um momento de virada.

    Em junho, Pharrell Williams pediu desculpas por sair na capa da revista "Elle" usando cocar de guerra, e a campanha para mudar o nome e logotipo do time de futebol americano Washington Redskins teve uma vitória importante quando o Escritório de Patentes cancelou as marcas registradas do time por faltarem com o respeito aos indígenas americanos. A moda mais recente dos festivais está na linha de frente de uma batalha muito maior contra a estereotipagem de "peles vermelhas".

    Divulgação
    Pharrell Williams na capa da revista 'Elle
    Pharrell Williams na capa da revista 'Elle'

    A reação contra os cocares é um exemplo clássico de ativismo on-line. Não está sendo encabeçada por uma campanha oficial, grupo de pressão ou celebridade, mas mais e mais vozes individuais reiteram uma reivindicação simples: parem de usar cocares como acessórios de moda. Muitos que fazem a reivindicação acham surpreendente que ela precise ser expressada em 2014.

    "Quando essa onda começou, fiquei espantado", diz Ehren Thomas, também conhecido como Bear Witness, falando do trio de música dance A Tribe Called Red, de Ottawa. "Pensei que a correção política dos anos 1990 tinha ensinado às pessoas que não é legal zoar de outras culturas, mas parece que não."

    Os cocares, muitas vezes acompanhados de pinturas de guerra com tinta fluorescente, têm sido vistos neste verão em festivais desde Coachella até Latitude. A ideia das tribos sempre teve destaque nos festivais —basta pensar na estética neo-pagã do Burning Man, do cenário das festas livres do início dos anos 1990 e dos enclaves hippies hardcore de Glastonbury.

    As pessoas passam o fim de semana em um campo, dormindo em barracas (ou, em alguns casos, tendas indígenas), possivelmente usando drogas, e algumas inevitavelmente exploram fantasias de escapar da sociedade moderna e abraçar seu "eu" natural, passando por culturas mais antigas. Os cocares se encaixam facilmente na variedade amorfa de apetrechos "tribais" vendidos em festivais há anos.

    Mas os argumentos contra o cocar como modismo são poderosos. Para começar, o modismo ignora as diferenças entre povos indígenas. Existem 564 tribos reconhecidas pelo governo federal dos Estados Unidos, mas a moda os inclui todos em um estereótipo vago só, com toda a falta de sofisticação de um faroeste B dos anos 1950.

    "Vemos uma pessoa de cocar na mesma imagem que um mastro de totem e uma canoa, sendo que essas coisas vêm de três culturas distintas", diz Bear Witness. "Os totens vêm do noroeste, os cocares são das planícies, e o tipo de canoas que se vê geralmente é de regiões de floresta. Logo, estão roubando nossas culturas individuais."

    Em segundo lugar, é um desrespeito ao significado sagrado do cocar. Entre as tribos das planícies, o cocar é usado apenas pelo chefe, sempre um homem, e apenas em ocasiões cerimoniais especiais. "A pessoa precisa conquistar o cocar", diz a acadêmica e ativista Adrienne Keene, da nação Cherokee, que tem um blog chamado Native Appropriations. "Isso se perde completamente quando o cocar é essa coisa feita de penas de galinha que a pessoa comprou numa loja de fantasias. O significado sagrado profundo perde para o desejo de se fantasiar e brincar de índio."

    Finalmente, longe de ser uma questão trivial, o modismo leva os povos indígenas a relembrar todos os crimes e indignidades mais sérios aos quais foram sujeitos nos últimos 500 anos. Mesmo depois de suas terras serem roubadas e eles terem sido dizimados em grande número, os indígenas americanos sobreviventes só ganhariam cidadania plena em 1924, e seus direitos religiosos só foram protegidos a partir de 1978. O "tribal chic" os trata como o outro: seres exóticos em sua própria terra.

    "Quando você vive num mundo que o enxerga como um mascote, com pintura de guerra e penas, as questões de representação ganham importância extrema", diz Bear Witness. "Vivemos e nos vestimos como todo o mundo. Não moramos em tendas, não caçamos búfalos. Tudo o que faz parte do estereótipo é uma maneira de nos desumanizar."

    Não é a primeira vez que a iconografia indígena americana é apropriada por outros. Alguns sem dúvida se ofenderam no início dos anos 1990, quando Corinne Day fotografou Kate Moss, então com 15 anos, de cocar, e Jay Kay, do Jamiroquai, usou cocar sobre o palco. Houve alguns protestos quando o OutKast cantou "Hey Ya!" de cocar contra um pano de fundo de uma tenda indígena na entrega dos Grammy de 2004.

    A diferença agora é que a tendência passou de vídeos pop e passarelas para o público de festivais e que está acontecendo sob o olhar das mídias sociais. "Nós, índios, sempre nos incomodamos com isso", falou Keene. "Mas agora temos uma plataforma e nossas vozes podem ser ouvidas."

    A tendência atual começou há oito anos. Natasha Khan, ou Bat for Lashes, usou uma série de cocares quando estava divulgando seu álbum "Fur and Gold", de 2006, e a atriz e cantora Juliette Lewis usou um cocar para projetar uma imagem guerreira com sua banda Juliette and the Licks. No início de 2010 uma série de incidentes —incluindo a performance de Ke$ha no "American Idol", a cobertura do festival Coachella e uma vitrine numa filial da Juicy Couture— levou Keene a escrever seu post muito citado "Por que não posso usar um cocar de hipster?".

    A novidade também converteu A Tribe Called Red de uma banda que tocava em festas em um grupo mais politizado. "O lado político de A Tribe Called Red foi uma responsabilidade que tivemos que assumir rápido", explica Bear Witness. "Queremos que as pessoas venham se divertir, mas quando as pessoas começaram a aparecer de cocar em nossas festas, tivemos que pôr a boca no trombone."

    A oposição à moda do cocar já provocou muitas saias justas. A nação Navajo está movendo uma ação contra a Urban Outfitters por sua linha de roupas e acessórios de inspiração navajo de 2011, que inclui garrafas para bebida alcóolica e a "calcinha hipster navajo". Ela alega que a empresa infringiu a marca registrada do nome navajo, pertencente à nação, e uma lei federal que torna ilegal sugerir falsamente que um produto tenha sido produzido por índios americanos.

    A Forever 21 mudou o nome de sua própria linha inicialmente batizada de Navajo e lançada no mesmo ano. Em 2012 a modelo Karlie Kloss pediu desculpas por ter usado cocar num desfile da Victoria's Secret. A grife fez o mesmo, e o No Doubt tirou do ar seu vídeo de "Looking Hot". Era uma miscelânea confusa de estereótipos de indígenas americanos que a banda disse ter sido criada após consultas com "especialistas em estudos indígenas da Universidade da Califórnia" —não, como parecia, com o fantasma de John Wayne.

    Mas nem mesmo esses incidentes de alto perfil bastaram para fazer os mundos do pop e da moda pensar duas vezes, a julgar pela gafe de Pharrell Williams e da "Elle" e do desfile de temática "caubóis e índios" da Chanel em novembro passado. Este ano o Flaming Lips mergulhou na maior controvérsia de sua história quando seu vocalista, Wayne Coyne, defendeu sua amiga Christina Fallin, filha do governador do Oklahoma, contra queixas de índios por ela ter postado no Facebook uma foto frívola usando cocar de guerra. Coyne e Fallin pediram desculpas, mas apenas depois de a situação se agravar, levando à saída do baterista da banda.

    "Acho frustrante que ainda tenhamos que ter esta conversa, considerando que hoje as informações são tão facilmente acessíveis", Keene comenta. "Se alguém da equipe de design de Pharrell tivesse procurado 'cocar indígena' no Google, teria encontrado na hora. Hoje, se a pessoa continua a desconhecer o assunto é porque isso é escolha sua, porque o assunto volta à tona a cada 15 dias."

    Um tema que se repete nos pedidos de desculpas feitos por celebridades é que as intenções da pessoa eram boas e que as reações de ultraje a pegaram de surpresa. As controvérsias revelam não um esforço consciente para menosprezar os indígenas americanos, mas o fato de que não se levou em conta, de maneira alguma, as implicações de usar um cocar cerimonial como acessório bonitinho.

    Por isso Keene passou a questionar a comparação que traçou em seu post de 2010 entre "brincar de índio" e usar maquiagem negra para representar um personagem negro. "Hoje já acho que não foi uma comparação muito boa. As pessoas que se pintam de preto no Halloween entendem que é uma ironia, mas a maioria das pessoas que usa cocar acha que é uma homenagem aos povos indígenas, uma espécie de respeito equivocado. Elas não fazem com má intenção, só que erram completamente."

    Cinquenta anos atrás os índios eram habitualmente demonizados na cultura popular. Em um caso que ficou famoso, Marlon Brando, que era defensor ferrenho do Movimento Indígena Americano, mandou a atriz indígena Sacheen Littlefeather à entrega dos Oscar em 1973 para rejeitar seu Oscar de melhor ator e ler um texto em que ele acusou Hollywood de "degradar o indígena e zombar de seu caráter". O problema atual é nocivo de um modo mais sutil. Os indígenas americanos não são demonizados, mas romantizados, retratados como figuras corajosas e nobres do passado distante. Isso esconde os problemas que as comunidades indígenas enfrentam hoje.

    "Isso é típico de como a maioria das pessoas enxerga os povos indígenas —como um grupo monolítico que não tem lugar na sociedade moderna", diz Keene. "Na cabeça da maioria das pessoas, existimos apenas como seres míticos, não como pessoas vivas, contemporâneas. Por isso, nossos problemas reais também não existem na cabeça das pessoas. Precisamos começar a desconstruir essas imagens para que sejamos vistos como seres humanos totais aos olhos dos não índios."

    Keene fica consternada com as reações negativas que tem recebido em seu trabalho de ativista. Enquanto figuras de alto perfil tendem a pedir desculpas, visando frear a publicidade negativa, o público comum de festivais e os torcedores esportivos muitas vezes resistem. Mas poucos vão tão longe quanto o jornalista do "Washington Times" que ousou escrever: "Apagar os nomes de grandes tribos indígenas dos times esportivos pode acabar por destruir a memória deles. A maior injustiça seria feito com os próprio indígenas."

    Assim, enquanto as vozes de protesto ganham força, a tendência de acentua. Além de serem usados em festivais, os cocares são muito procurados no Etsy. Mas Keene e Bear Witness dizem que as coisas estão mudando. As universidades começaram a recomendar aos estudantes que não se fantasiem como caricaturas étnicas em festas de Halloween. Depois de provocar um incidente tenso na Noite do Legado Cultural dos Índios Americanos, o time de beisebol San Francisco Giants estuda a possibilidade de proibir os cocares. E a decisão do festival Bass Coast pode levar outros festivais a seguirem seu exemplo no próximo verão.

    Quando Keene e outra ativista, Jessica Metcalfe, reagiram com ultraje a um suposto encontro indígena cheio de estereótipos promovido pela grife Paul Frank em 2012, a grife pediu a colaboração delas para a criação de uma linha "apropriada e respeitosa" usando estilistas indígenas. "Uma multinacional grande trabalhou com estilistas indígenas e criou algo apropriado e belo", disse Keene. "Se outras empresas começassem a fazer isso, deixando o público ver como é de fato o design indígena, seria incrível."

    Bear Witness acha que erros que custam caro, como o vídeo do No Doubt, também devem ter efeito dissuasivo. "Financeiramente falando, deve ter sido brutal para os produtores. Fizeram um vídeo que só ficou algumas horas no ar."

    Os ativistas parecem ter argumentos irrespondíveis. Talvez no próximo verão o uso do cocar em festivais tenha virado tabu. Mas o otimismo de Bear Witness tem seus limites. "Já fico surpreso quando vejo isso acontecer hoje (o uso equivocado de cocares)", ele comenta em tom resignado. "Pode ser que ainda fique surpreso de ver acontecer no futuro".

    Tradução de CLARA ALLAIN

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