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    Crítica: Nabokov usa em autobiografia encantos de sua melhor ficção

    IRINEU FRANCO PERPETUO
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    20/09/2014 02h29

    Dentre os personagens criados por Vladimir Nabokov (1899-1977), um dos mais fascinantes é o próprio Nabokov. Ao tratar os fatos de sua vida com os sofisticados procedimentos literários que lhe renderam fama e fortuna, o autor de "Lolita" faz da autobiografia "Fala, Memória" leitura prazerosa.

    Lenta e meticulosa, a elaboração da obra-prima levou nada menos do que três décadas, desde a aparição, em francês, de "Mademoiselle O" (que se tornaria o quinto capítulo), passando por "Prova Conclusiva" (primeira versão do livro, em 1951) até a publicação da versão atual, definitiva e revisada, em 1966.

    No prefácio, Nabokov conta que pretendia dar à obra o título de "Fala, Mnemosine" (em alusão à deusa grega que personificava a memória), porém foi advertido de que "velhinhas não iriam querer pedir um livro cujo título não pudessem pronunciar".

    Das três fases em que divide sua existência —o "arco tético", na Rússia (1899-1919), a "óbvia antítese" do exílio europeu (1919-1940) e a "nova tese" nos EUA—, Nabokov ocupa-se, aqui, das primeiras duas, tendo a mulher, Vera, como interlocutora do livro.

    Patrimônio Vladimir Nabokov/Reprodução
    Vladimir Nabokov (à esq.) aos sete anos de idade, ao lado do pai
    Vladimir Nabokov (à esq.) aos sete anos de idade, ao lado do pai

    Em vez de usar uma estrutura linear, o autor opta por fazer de cada capítulo um eixo temático, adotando um grande arco narrativo cujo foco parece ser o despertar de seus sentidos e sensibilidades.

    O desafio é reconstituir uma vida pessoal cujos personagens, depois de servirem como matéria-prima de sua literatura, consumiram-se no "mundo artificial" em que o autor "tão abruptamente" os colocara. Nessa operação, Nabokov se serve de preciosismo verbal, manipulação temporal e outros recursos responsáveis pelo encanto de sua melhor ficção.

    Fala, Memória
    Vladimir Nabokov
    Vladimir Nabokov
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    Estão lá a obsessão pelo xadrez e pelas borboletas, o deleite de ser goleiro, a implicância com Freud e Tchaikovsky, a oposição ao regime soviético e a admiração pelo pai, expressa em um capítulo que evita o pieguismo sem deixar de ser apaixonado.

    A edição da Alfaguara traz ainda, como como apêndice, o "Capítulo 16", inédito no Brasil —uma pseudorresenha na qual o escritor não tem pudores em se comparar favoravelmente a outro autor eslavo que adotou o inglês como idioma literário, o polonês Joseph Conrad (1857-1924), cujo estilo seria "uma coleção de gloriosos clichês".

    Típica de Nabokov, a irrupção de arrogância e autoelogio é temperada por episódios saborosos de humor e autoironia.

    FALA, MEMÓRIA
    AUTOR Vladimir Nabokov
    TRADUÇÃO José Rubens Siqueira
    EDITORA Alfaguara
    QUANTO R$ 39,90 (328 págs.)
    AVALIAÇÃO ótimo

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