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    Crítica: Evandro Affonso Ferreira volta a escrever para poucos

    ALMIR DE FREITAS
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    04/10/2014 02h18

    À beira da morte, presa a uma cama de hospital, uma mulher imagina-se vagando nua pelas ruas de São Paulo, cruzando com os personagens habituais da cidade, de mendigos a executivos.

    Narrado em um longo monólogo, o percurso íntimo, extremo, é povoado também de outras vozes, memórias e referências –literárias, filosóficas e mitológicas– que não acabam mais.

    Muito sinteticamente, é este o universo de "Os Piores Dias de Minha Vida Foram Todos", título que vem a calhar para completar a sinopse do novo livro de Evandro Affonso Ferreira.

    Marcelo Justo/Folhapress
    O escritor de 'Os Piores Dias de Minha Vida Foram Todos', Evandro Affonso Ferreira
    O escritor de 'Os Piores Dias de Minha Vida Foram Todos', Evandro Affonso Ferreira

    Terceiro volume de uma trilogia, ele se assemelha em tudo aos seus predecessores –"Minha Mãe se Matou Sem Dizer Adeus", de 2010, e "O Mendigo que Sabia de Cor os Adágios de Erasmo de Rotterdam", de 2012.

    No conjunto, ilustram de saída um marco do romance, em que reiteração e recorrência, assumidos, se espalham pelos temas, pela estrutura ficcional e pelos recursos narrativos.

    PRECISÃO

    Com regularidade, o monólogo oscila entre a consciência da narradora sobre sua condição; as ruas; a justificativa do delírio; a lembrança de um grande amigo; e também ao seu paradigma mais geral –Antígona, a filha de Édipo que preferiu ser enterrada viva a deixar o corpo do irmão insepulto.

    Nessa fórmula de precisão quase matemática, não existe desvio possível. A reiteração se aplica, inclusive, ao léxico e ao estilo particulares: nomes reforçados por pronomes; enfileiramento de substantivos e adjetivos similares; frases, palavras, expressões marteladas à obsessão.

    EQUAÇÃO

    Se a metáfora das exatas é aceitável, "Os Piores Dias"¦" é uma equação que se faz inteiramente de hipérboles, no que elas têm –no sentido geométrico ou retórico– de fechado, previsível e exagerado.

    Lá pelas tantas, nada surpreende: a quantidade de vezes em que a expressão "in totum" aparece no monólogo; as construções como "súbita dor cruciante tremura exasperação sangradura abortífera"; a frequência com que, judiciosa, a narrativa nomeia a "parvoíce" e "patetice" das pessoas ao redor.

    Em certo sentido, "Os Piores Dias"¦" está cheio de elementos para se defender diante da banca.

    Mas, em muitos outros, não resiste à realidade vulgar que, a propósito, ele faz questão de repelir.

    No varejo das coisas, reiteração e ênfase meramente formais se transformam em pura repetição, em insistência. Coisas que, com raríssimas exceções, resultam em aborrecimento.

    Os Piores Dias da Minha Vida Foram Todos
    Evandro Affonso Ferreira
    livro
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    Evandro Affonso Ferreira já disse que não se importa com a falta de leitores para seus livros. E isso sempre em referência à avaliação de que sua prosa, hermética, se contrapunha a uma literatura de consumo fácil.

    Na ponta do lápis, a avaliação é imprecisa: no universo reduzido de público de boa literatura, as referências eruditas dos livros de Evandro não são tão difíceis assim. O mesmo se aplica ao vocabulário tortuoso e à sintaxe.

    Incluir na conta da falta de leitores a multidão que prefere os best-sellers (ou livro nenhum) é promover uma distorção estatística.

    Vale, sim, considerar outra hipótese. A de que, depois de tantos ensaios experimentalistas, a obra de Evandro tenha se encantado por uma espécie de neobeletrismo. Nas suas referências clássicas, no vocabulário culto, no orgulhoso universo reduzido de leitores.

    OS PIORES DIAS DE MINHA VIDA FORAM TODOS
    AUTOR Evandro Affonso Ferreira
    EDITORA Record
    QUANTO R$ 30 (128 págs.)
    AVALIAÇÃO regular

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