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    Crítica: Textos inacabados são pouco para convencer o leitor de Saramago

    MARCELO PEN
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    11/10/2014 02h36

    A morte de um escritor sempre gera expectativa com relação a seus manuscritos inéditos. Sobretudo os inacabados ou os que não receberam, por assim dizer, o ponto final.

    "Bouvard e Pécuchet", de Flaubert; "A Torre de Marfim", de Henry James; "O Castelo", de Kafka e mesmo, recentemente, "2666", de Roberto Bolaño, são bons exemplos. Todos obras-primas.

    Mas que dizer deste inédito do Nobel português? Os três capítulos que temos são promissores, apesar dos problemas. Mas são suficientes?

    As notas encontradas em seu computador portátil provam que o meio eletrônico não serve para a conservação das marcas da intencionalidade autoral. Nada há nelas que justifique o atributo de "acúmulo do conhecimento do artesão", que Ezra Pound dirigiu às anotações de James sobre "A Torre de Marfim".

    Os três textos incluídos à guisa de posfácio tampouco esclarecem muito, sendo em geral mais laudatórios do que (como Pound) analíticos. Exceção ao comentário de Luiz Eduardo Soares de que "a obra interrompida traz consigo a presença poderosa do autor, pelo efeito paradoxal de sua ausência involuntária".

    O autor "in absentia" narrativa nos leva a perseguir seus desígnios secretos qual pistas deixadas por um assassino –como em "O Mistério de Edwin Drood", cuja morte do autor, Dickens, deixou em suspenso a revelação sobre a identidade do criminoso.

    Em Saramago, o herói é Artur Paz Semedo, modesto faturista de uma improvável empresa portuguesa de armamentos. Amador de instrumentos bélicos e histórias de guerra, é um dia abalado por um trecho do livro de André Malraux sobre a Guerra Civil Espanhola, que menciona operários fuzilados pela sabotagem de obuses.

    Semedo consegue permissão para vasculhar os arquivos alojados nos subterrâneos do edifício. Seu objetivo: descobrir se dali partiu uma bomba não rebentada durante o conflito que resultou na vitória dos fascistas.

    Alabardas, Alabardas
    José Saramago
    livro
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    Os donos da empresa e dois arquivistas de inspiração kafkiana constituem os demais personagens. O enredo não avança muito. E há problemas, como confundir paraguaios com uruguaios na Guerra do Chaco e, adiante, dizer que um dos motivos do conflito seria o desejo da Bolívia de obter uma saída direta para o Pacífico. A saída é indireta, pelo rio Paraguai, e para o Atlântico!

    O que temos basta para atestar o estilo narrativo de Saramago e mesmo sua maestria, como na descrição do choque de Semedo com o livro ou da atmosfera agoureira dos arquivos.

    Mas desconfio de que seja pouco para convencer o leitor de que esteja, nas palavras de Pound, perante "um abundante senso de vida em um autor".

    ALABARDAS, ALABARDAS, ESPINGARDAS, ESPINGARDAS
    AUTOR José Saramago
    EDITORA Companhia das Letras
    QUANTO R$ 27,50 (112 págs.)
    AVALIAÇÃO regular

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