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    Crítica: 'O Círculo' é brilhante ao rir da vontade humana de ser amado

    ZECA CAMARGO
    COLUNISTA DA FOLHA

    18/10/2014 02h39

    Em "1984", George Orwell projetou sua imaginação para um futuro de quase quatro décadas e imaginou um mundo onde ninguém podia ter uma opinião, muito menos gostar de outra pessoa —a não ser, claro, do Grande Irmão.

    Dave Eggers, em "O Círculo", imagina um microuniverso de uma empresa que poderia bem existir nos nossos dias, onde, ao contrário da Oceania da história de Orwell, todo mundo tem que dar sua opinião, se possível positiva —e todo mundo fica feliz quando se sente "curtido". Difícil imaginar qual dos dois cenários é mais terrível.

    Eggers, mestre do olhar contemporâneo, aponta desta vez para a própria fraqueza das comunidades que estamos criando: a identidade geral delas, que a princípio parece pregar a aceitação e a liberdade, guarda na sua essência uma tirania muito próxima à do Grande Irmão.

    Wes Pope/Chicago Tribune/MCT
    O escritor Dave Eggers
    O escritor Dave Eggers

    Ela é orquestrada por uma empresa —o tal Círculo— que desenvolveu uma ferramenta de identificação infalível na internet. Ninguém mais pode assumir uma falsa identidade, e é com essa transparência máxima que o Círculo floresce rumo à dominação mundial.

    Quem nos leva nesse processo é Mae, uma novata na empresa. Seu trabalho, a princípio, é aborrecido: atendimento ao usuário.

    Mas logo ela percebe que pode crescer dentro do Círculo se tiver boa avaliação dos seus clientes e responder ao maior número possível de solicitações nos grupos que surgem diariamente na empresa.

    Mae está conectada o tempo todo. Relutante no começo, ela vai sendo seduzida pelo esquema, e logo ganha um óculos (como o Google Glass) e passa a dar opiniões sobre produtos que piscam na sua pequena tela. E, assim, dispara no ranking das pessoas mais populares do Círculo. Enfim, o sucesso.

    O problema é que, com tanta opinião para dar, não sobra espaço para uma coisa de que a gente gosta muito —ou pelo menos gostava até o advento das redes sociais— chamada "vida pessoal". Mas quem está ligando para isso quando é tão legal viver a vida dos outros (e implorar para que os outros vivam um pouco da sua)?

    O Círculo
    Dave Eggers
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    Eggers conta sua história de maneira simples, quase com medo de não agradar uma geração que se desacostumou a ler parágrafos com mais de 140 toques.

    Parece um recurso fácil, mas é uma engenhosa construção que se encaixa perfeitamente numa narrativa contemporânea. O destino de Mae, tudo indica, é a transparência total —e o autor parece nos perguntar: vale a pena?

    Eggers sabe a resposta. Você também. Mas prever o que vai acontecer nesses nossos tempos tão conectados não é a questão principal. O que o livro faz, e brilhantemente, é rir da nossa vulnerabilidade à vontade irresistivelmente humana de sentir-se amado. Desculpe —curtido!

    O CÍRCULO
    AUTOR Dave Eggers
    TRADUÇÃO Rubens Figueiredo
    EDITORA Companhia das Letras
    QUANTO R$ 54,50 (528 págs.)
    AVALIAÇÃO ótimo

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