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    Irmãos Dardenne falam de realismo no cinema e de seu novo filme

    A. O. SCOTT
    DO "NEW YORK TIMES", EM TELLURIDE, COLORADO

    25/10/2014 13h14

    Estagnação salarial, desigualdade de renda, custo de vida, o declínio da classe média: são questões que crises mais dramáticas costumam expulsar das manchetes, mas continuam a afetar o discurso político, especialmente nos Estados Unidos e na Europa. No cinema, a injustiça econômica ocasionalmente serve de munição para a alegoria –como em "Expresso do Amanhã", de Bong Joon-Ho, filme de ação que se tornou um sucesso surpreendente na temporada de verão nos EUA– e mais frequentemente como axioma de realismo. E pelos últimos 15 anos, pouco mais ou menos, o realismo cinematográfico vem sendo virtualmente sinônimo do nome Dardenne –Jean-Pierre, 63, e Luc Dardenne, 60, os irmãos belgas que ganharam duas Palmas de Ouro no Festival de Cannes.

    "Dois Dias, Uma Noite", seu mais recente filme, encontra importância global em uma história magra, quase uma anedota, sobre os problemas de uma trabalhadora. O mesmo pode ser dito sobre os demais trabalhos de ficção dos Dardenne, que observam em modo naturalista as vidas dos moradores pobres, e um pouco menos pobres, do coração industrial francófono da Bélgica. Os Dardenne são cronistas fiéis de uma classe trabalhadora europeia em crise, e seus métodos austeros influenciaram cineastas em lugares como a Argentina e o Cazaquistão - onde quer que problemas trabalhistas, de subsistência e de sobrevivência econômica pareçam especialmente agudos, o que, hoje em dia, quer dizer mais ou menos todo lugar.

    Ian Langsdon - 20.mai.2014/Efe
    Os irmãos Jean-Pierre (esq.) e Luc Dardenne com a atriz Marion Cotillard na exibição de "Dois Dias, Uma Noite" em Cannes
    Os irmãos Jean-Pierre (esq.) e Luc Dardenne com a atriz Marion Cotillard na exibição de "Dois Dias, Uma Noite" em Cannes

    Desde que lançaram "A Promessa", em 1996, os irmãos se tornaram os principais herdeiros da combalida mas duradoura tradição do neorrealismo, e são conhecidos - e, no mundo dos festivais internacionais de cinema, celebrados - por sua consistência de estilo e temas. Filmam suas produções em ou perto de Seraing, a cidade em que cresceram, e escalam atores locais, profissionais e amadores, em companhia de ocasionais astros do cinema francês ou belga. (Marion Cotillard, com olhos preocupados e uma postura de cansaço sem qualquer traço de vaidade artística, encabeça o elenco de "Dois Dias, Uma Noite"). Há uma tomada típica, e muito imitada, dos Dardenne: uma câmera de mão seguindo por trás um personagem cujo ponto de vista é tanto enfatizado quanto obscurecido pelo enquadramento: uma pessoa em circunstâncias difíceis que se vê forçada a fazer uma escolha custosa e moralmente dilacerante.

    Em entrevista recente, aqui –uma parada no itinerário de festivais que conduziu "Dois Dias, Uma Noite" de Cannes a Toronto e Nova York, onde o filme será exibido domingo–, Luc Dardenne, pelo menos nessa ocasião o mais comunicativo dos irmãos, resumiu o tema existencial de suas obras. "Talvez seja simplista expressar dessa maneira", ele disse, "mas todos os nossos filmes narram como uma pessoa emerge de sua solidão e se une a outra ou outras pessoas. 'O Filho', 'Rosetta', 'A Promessa': de uma maneira ou de outra, mostramos como alguém encontra alguém, e como esse encontro é transformador, como ele resolve o isolamento que havia mantido o personagem principal fora da sociedade, fora da comunidade".

    A precisão dessa avaliação é muito evidente. Mesmo quando as tramas têm viradas sombrias, rumo ao desemprego, prisão ou violência, elas jamais abrem mão da possibilidade de conexão humana, do reconhecimento que afirma a participação de um indivíduo em uma identidade coletiva mais ampla: um casal, uma família, uma equipe, uma classe social, a espécie humana.

    Ainda que Luc descreva essa ideia em termos abstratos, quase filosóficos, ela tem claras dimensões éticas e mesmo políticas. Em "A Promessa", um menino fica dividido entre a lealdade ao pai, que comanda uma construtora cujos funcionários em sua maioria são imigrantes ilegais, e o conhecimento de que as condições de trabalho dos operários são perigosas e ilegais. O senso de responsabilidade que pesa tanto sobre ele, e que o força a escolher entre duas formas de traição, deriva de uma injustiça maior.

    Em "O Filho" (2003), talvez o mais íntimo filme dos Dardenne, um professor de carpintaria se vê servindo com o mentor do jovem responsável pela morte de seu filho, e angustiado pelo conflito entre os impulsos de vingança e perdão. Mas questões de classe e trabalhistas também pendem sobre a história. O pai em luto (interpretado por Olivier Gourmet, a estrela polar no universo dos Dardenne), tem a dignidade do trabalho e a disciplina de seu artesanato como forças centrais. O niilismo que ele vê no assassino adolescente e bruto é um sintoma da perda desses valores, uma perda fantasmagoricamente presente em cada quadro filmado pelos Dardenne.

    Ela aflige o protagonista de "A Criança" (2005), um jovem sedutor e oco que desliza sem pensar duas vezes dos pequenos crimes para a monstruosidade escancarada, vendendo seu bebê recém-nascido para comprar jaquetas de couro combinadas para ele e a namorada com parte do dinheiro. Se ele não consegue encontrar trabalho honesto, pode ao menos experimentar alguns dos prazeres do consumismo, e abrir mão de seu primogênito lhe parece uma moeda de troca aceitável.

    O personagem-título de "Rosetta" (1999), o primeiro filme dos irmãos Dardenne a conquistar a Palma de Ouro em Cannes (o segundo foi "A Criança") é uma jovem de 17 anos em guerra com todo o universo, o que inclui ela mesma, sua mãe alcoólatra, o capataz de uma fábrica e a chapeira de restaurante que talvez seja sua única amiga. O comportamento antissocial e autodestrutivo de Rosetta expressa um desejo tanto primitivo quanto prático, banal e profundo. O que ela deseja, acima de tudo, é trabalhar, garantir o tipo de identidade social e conexão humana que um emprego pode prover.

    Em "Dois Dias, Uma Noite", a necessidade de trabalho também é o que motiva Sandra, de muitas maneiras o oposto de Rosetta: uma mulher de fala mansa que vive com o marido e os dois filhos em uma casa moderna e asseada na cidade. Mas a angústia de Sandra, manifestada em forma de depressão e não raiva, é tão bruta quanto a de Rosetta, e o que há em jogo em sua luta parece, se possível, ainda mais importante. Demitida ao retornar de uma licença médica, ela precisa persuadir seus colegas de trabalho a rejeitarem suas bonificações para que a empresa possa pagar seu salário. O título do filme e sua estrutura de corrida contra o relógio são referência às condições impostas pelo chefe de Sandra. Na manhã da segunda-feira, os 16 membros da equipe de trabalho de Sandra votarão para decidir seu destino, e ela tem o final de semana como prazo para persuadi-los a sacrificar seus interesses - uma bonificação de mil euros que todos batalharam muito por ganhar e da qual precisam desesperadamente - a fim de preservar o bem-estar da colega.

    "Ela é uma pessoa sobre a qual pensamos durante 10 anos", disse Jean-Paul. A ideia de uma trabalhadora forçada a barganhar para manter seu emprego não com o comando da empresa, mas com seus colegas, era uma metáfora poderosa sobre o estado do capitalismo moderno, para começar, mas à luz da crise financeira de 2008 e de suas duradouras e difíceis consequências, ganhou especial relevância.

    "Em 2010, 2012, começamos a realmente ver as consequências econômicas e sociais", disse Luc, "e isso nos reconduziu a esse cenário e nos convenceu a fazer o filme. Havia muito mais gente desempregada em nossa área, e não só em nossa área". Histórias pessoais parecidas com o dilema de Sandra se tornaram mais comuns. Luc descobriu que, nos meses anteriores à estreia de "Dois Dias, Uma Noite" na França, três empresas na França e Bélgica haviam sujeitado seu pessoal a escolhas semelhantes.

    "É verdade que prestamos atenção ao que as histórias podem dizer sobre as relações sociais nos países do Ocidente", disse Jean-Pierre, em referência à obra dos dois em termos gerais. "Mas nossa intenção é sempre fazer filmes sobre personagens em suas situações específicas, e não usá-los como porta-vozes em defesa de uma dada posição. Se existe um ponto de vista político nos filmes, ele precisa derivar da ação, e não das circunstâncias".

    As experiências de Sandra são uma perfeita ilustração desse método. O espectador a acompanha em suas visitas e ansiosos telefonemas a colegas, em seu esforço por falar com cada um deles. Para ela e para nós, o aspecto repetitivo desses encontros é estafante e desconfortável, mas também crucial para o poder emocional do filme. Cada encontro é único porque cada pessoa com quem Sandra conversa tem respostas e preocupações únicas. Um homem, que está jogando futebol com os amigos, começa a chorar. Outro ameaça Sandra de violência. Alguns não conseguem olhá-la nos olhos, e outros são muito diretos em seu apoio ou recusa. Alguns se recusam a responder que sim ou que não. Mas, como diz Jean-Pierre, "cada um deles é tão importante quanto Sandra. Não existem papéis coadjuvantes".

    Tampouco há julgamento, da parte de Sandra ou dos cineastas. O que faz seu suplício parecer especialmente doloroso é seu forte sentimento de que não tem direito de pedir aos colegas que desistam de seu dinheiro tão batalhado para beneficiá-la. Por que as necessidades dela deveriam valer mais do que as deles? Mas essa, claro, é uma questão profundamente política. "O tema do filme é a solidariedade", disse Luc.

    Na história do trabalhismo, na Europa e em outras nações ocidentais, a palavra ganhou associações que se estendem dos organizadores e agitadores sindicais da Industrial Workers of the World, no oeste dos Estados Unidos durante a Primeira Guerra Mundial, aos operários dos estaleiros de Gdansk nos anos finais da guerra fria. Esse ideal, na visão dos Dardenne, terminou erodido por uma ética de concorrência e egoísmo.

    "Queríamos fazer alguma coisa para mostrar o estado em que estamos agora", disse Luc. "As pessoas são intensamente individualistas. Todas têm problemas de dinheiro. Todas estão endividadas: pagando por suas casas, carros, crianças. Todos vivem em estado de insegurança, medo. Queríamos mostrar isso, como as pessoas vivem em estado precário. No filme, quase todo mundo tem mais de um emprego, não para enriquecer, mas para ganhar o dinheiro de que precisam para pagar por suas necessidades".

    Ao contrário da maioria dos heróis e heroínas dos Dardenne, Sandra e sua família - e a maioria das famílias que ela visita - vivem em modesto conforto. Nos Estados Unidos, seriam vistos como pessoas de classe média. A família tem algumas posses de qualidade, comida suficiente, televisores, um carro. Sandra estaciona em entradas de garagem e faz seu apelo em quintais bem cuidados. Mas o sentimento do filme vem percepção de fragilidade desse padrão de vida, do terror de que o desemprego signifique não só perda de renda mas a cataclísmica perda do status social de normalidade conquistado tão recentemente.

    Essa é uma ansiedade que pode se fazer sentir com muita intensidade nos Estados Unidos, onde o individualismo tem raízes mais profundas e onde a queda para fora da classe média é menos protegida por benefícios sociais e proteções ao emprego. O cenário de "Dois Dias, Uma Noite" pode ser especificamente belga, mas é fácil imaginar histórias semelhantes contadas nos Estados Unidos sobre funcionários do comércio e de restaurantes fast food, baristas e vendedores, pintores de casas e executivos de médio escalão que sentem o chão se mover sob seus pés e que o sonho americano lhes está escapando por entre os dedos.

    Eles todos são parte de uma narrativa maior: uma complexa história de globalização e expansão da economia de consumo, do declínio da velha esquerda e da ascensão do neoliberalismo. É uma história que os Dardenne vêm contando, capítulo a capítulo, já há muito tempo. Em um trecho de diário publicado em seu livro, "Au Dos de Nos Images" [nas costas de nossas imagens], Luc Dardenne define a moral da história: "O trabalhador se tornou uma pessoa solitária, membro de uma espécie em extinção", ele escreveu. "Será que seu desaparecimento deixará um legado? E qual seria?"

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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