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    Atriz Julianne Moore é carente e tirânica em novo filme de Cronenberg

    CHARLES MCGRATH
    DO "NEW YORK TIMES"

    24/11/2014 17h18

    Em sua longa e invejável carreira, Julianne Moore sempre fez questão de trabalhar tanto em filmes de grande orçamento como "Sem Escalas", o recente thriller de Liam Neeson, quanto em filmes independentes de baixo orçamento como "Pelos Olhos de Maisie", do qual a verba de guarda-roupa era tão pequena que ela terminou emprestando roupas à produção.

    Nesta temporada, ela participa da terceira parte na trilogia "Jogos Vorazes", que estreou em 19 de novembro, e também do mais recente filme de David Cronenberg, "Maps to the Stars", sem data para chegar ao Brasil. Ainda que se passe em Hollywood, o filme de Cronenberg foi filmado principalmente em Toronto, para economizar dinheiro, e Moore teve de arranjar joias e bolsas para ajudar a produção.

    Os filmes comerciais pagam as contas, mas os independentes em geral oferecem os melhores papéis que Moore já interpretou. Ela é provavelmente mais celebrada por suas interpretações sutis e comoventes em filmes como "Longe do Paraíso", "Fim de Caso" e "As Horas", nos quais interpreta mulheres reprimidas ou secretamente atormentadas, escondendo alguma coisa do mundo, de suas famílias e até de si mesmas. Mas também se especializa em personagens obsessivas, furibundas e malucas, que não conseguem esconder coisa alguma.

    A primeira vez que muitos de nós a vimos nas telas foi em "Short Cuts: Cenas da Vida", de Robert Altman, em 1993, no qual ela faz uma arenga memorável enquanto nua da cintura para baixo. Moore também interpretou Amber Waves, a desequilibrada estrela pornô viciada em cocaína de "Boogie Nights - Prazer Sem Limites" (1997); a mulher casada, mimada e rica que, em "Magnólia" (1999), repreende um farmacêutico com termos raramente ouvidos em uma drogaria; e, em "O Grande Lebowski" (1998), uma artista performática falastrona cujo grande tema é a própria vagina.

    O papel de Moore em "Maps to the Stars" é dessa variedade exagerada, incontida. Ela interpreta Havana Segrand, uma espécie de Norma Desmond atualizada, estrela de filmes B em Hollywood que é tanto carente quanto tirânica, tanto infantil quanto monstruosa.

    O personagem, entre outras coisas, se envolve em um ménage à trois explícito, faz sexo na traseira da limusine com o motorista (Robert Pattinson), dança de alegria ao ouvir a notícia da morte de uma criança, e faz um monólogo autoritário sentada na privada. O desempenho de Moore é tão vívido e ousado, e ao mesmo tempo tão triste e ocasionalmente tão engraçado, que lhe valeu um prêmio como melhor atriz em Cannes este ano, e já existem especulações de que possa lhe valer o Oscar, que até agora escapou por pouco —Moore já foi indicada quatro vezes, duas das quais em 2002 por "As Horas" (2003) e "Longe do Paraíso" (2002).

    Cronenberg disse não muito tempo atrás que um motivos para que escalasse Moore foi que ela tinha a cara do papel —o fato de que ela recentemente tenha se tornado cidadã britânica também não atrapalhou, permitindo que o canadense Cronenberg contornasse alguns dos complicados requerimentos de financiamento que limitavam o número atores dos Estados Unidos que ele estava autorizado a usar.

    "É preciso ter alguém com a idade certa", ele explicou, "e é preciso que ela seja bonita. É preciso que ela seja convincente como alguém que teve um momento de estrelato. E, claro, ela precisa estar disposta a encarar o papel". O monólogo na privada parecia excessivo para muita gente; até mesmo Denise Cronenberg, irmã do diretor e encarregada do guarda-roupa do filme, acreditava que ele tivesse ido longe demais.

    Pessoas que trabalharam com Moore dizem que, na vida real, ela não poderia ser menos parecida com a temperamental Havana Segrand.

    "Ela está sempre incrivelmente bem preparada, e é uma colaboradora maravilhosa, completamente profissional", diz Stephen Daldry, que a dirigiu em "As Horas".

    Cronenberg concorda: "Ela vem sem diva, sem ego, sem aspones", disse ele. "Até o momento em que a claquete bate, ela é completamente doce, fácil de abordar, e depois se torna esse personagem com quem você detestaria passar um minuto".

    Ao contrário de Havana, Moore é bem casada com o cineasta Bart Freundlich e o casal tem dois filhos. A atriz vive em Nova York, não Hollywood, e é inteligente, divertida e simples. Em nossa conversa, em uma manhã recente, ela chegou ao Cafe Cluny, não muito longe de sua casa no West Village, usando uma blusa branca, simples, e calças pretas de algodão, com os cabelos ruivos soltos e sem maquiagem para esconder as sardas abundantes.

    "Eu gosto de me definir como Julie bourgie", ela disse, explicando que encarava com seriedade a famosa recomendação de Flaubert: "Leve uma vida regular e ordeira, como a de um burguês, para que possa ser violento e original em sua obra".

    O dramaturgo e ator Wallace Shawn, que conhece Moore desde o começo dos anos 1990, quando atuaram juntos nas versões de palco e para o cinema de "Tio Vanya em Nova York", de Andy Gregory, diz, sobre ela, que "em parte é uma questão geracional. Ela não tem aquele tipo de personalidade de estrela, ao modo de Joan Crawford. É mais como uma mãe típica de Nova York, com muito interesse em mobiliar a casa, mas que no seu trabalho pode de repente ser uma assassina ou coisa assim".

    Ele acrescenta: "Em minha opinião, ela está nisso em parte pela aventura. Atuar em geral é exatamente aquilo que parece. Todo mundo que não é ator interpreta um só papel, o de si mesmo. Mas um ator, de certa maneira, tem a experiência de como as coisas seriam em circunstâncias completamente diferentes, e Julianne realmente aprecia a aventura, a exploração".

    Moore diz que não se vê como especialmente ousada. "Assim que me certifico de que estou segura e estou com um diretor que toma conta de mim, posso sair e fazer o que preciso, sabendo que o que importa não sou eu, mas a história".

    Ela diz: "É como se eu ficasse inconsciente, algo assim. Acho que atuar é como uma espécie de auto-hipnose. Você precisa estar hiper, hiperconsciente do que acontece ao seu redor. Tem de saber onde está a lente, qual é a tomada, para onde você tem de se movimentar. E depois você tem de se autoiludir e chegar a um estado emocional no qual acredita que aquelas coisas estão realmente acontecendo".

    Loic Venance/AFP
    Julianne Moore (à esq.) e Robert Pattinsonem coletiva de imprensa de 'Maps to the Stars', em Cannes
    Julianne Moore (à esq.) e Robert Pattinsonem coletiva de imprensa de 'Maps to the Stars', em Cannes

    Moore, 53, nasceu em Fort Bragg, na Carolina do Norte, e cresceu como filha de militar, se mudando 20 vezes e estudando em nove escolas diferentes antes do começo de sua adolescência. Sua mãe, de quem Moore diz ter herdado a beleza —os malares altos, os olhos verdes acinzentados, o cabelo ruivo flamejante— era escocesa e se mudou para os Estados Unidos quando muito moça, mas nunca deixou de lado a sua herança —Moore recentemente publicou um livro infantil sobre a mãe, chamado "My Mom Is a Foreigner, but Not to Me" (minha mãe é estrangeira, mas não para mim).

    O que ela aprendeu com sua criação é que "comportamento não significa caráter", disse. "As pessoas acham que é, mas não é. O comportamento é mutável. Muda de lugar a lugar. É como sotaques, dialetos —mudam de área para área. Mas existem verdades universais sobre o que ser humano significa. Tudo o mais é acessório. Aprender esse fato foi interessante para mim, e talvez útil para meu trabalho como atriz".

    Quando jovem, Moore não tinha grande interesse pelo mundo do espetáculo. Gostava de ler, e descobriu o teatro principalmente pela leitura. Estava fazendo o segundo grau na Alemanha quando um professor sugeriu que atuar poderia um dia ser seu ganha-pão. E até hoje ela aborda o trabalho como atriz literalmente, fazendo questão de estudar seu diálogo e de encená-lo exatamente como escrito.

    "O que odeio são aquelas reuniões em que alguém diz que o roteiro é só uma base", diz Moore. "E fico pensando que não gosto disso, que quero texto". O que mais a atraiu em "Maps to the Stars", ela acrescenta, foi o roteiro de Bruce Wagner, cujos romances ela admira há muito tempo. "A linguagem de Bruce é tão espetacular, tão precisa, que não foi nada difícil entrar no personagem de Havana", ela explicou. "Porque a linguagem era tão detalhada, eu sentia poder ouvi-la, e vê-la".

    Shawn disse que "acredito que, para Julianne, atuar seja, simplesmente e em última análise, uma extensão de sua leitura".

    Daldry não exatamente discorda, mas em uma entrevista por telefone ele recentemente apontou que um dos pontos fortes da atriz era sua capacidade de transmitir aquilo que não está no roteiro.

    "Laura, o personagem dela em 'As Horas', é uma mulher que interpreta o papel errado em sua vida, tentando atingir uma espécie de perfeição inatingível", ele disse. "Julianne era ideal, porque o personagem girava muito em torno do que ela não diz, e Julianne é capaz de comunicar tanto com tão pouco, e de modo tão sutil. Ela é incrivelmente comovente".

    Daldry diz que descobriu essa qualidade no trabalho de Moore nos anos 1990, quando a viu na produção de "Tio Vanya em Nova York" (1994), em que os atores improvisavam com base em "Tio Vanya", de Tchekhov, durante três anos, no Victory Theater, uma edificação abandonada, sem nunca fazer a peça da mesma maneira. Em retrospecto, esse trabalho foi um marco na carreira de Moore, que lhe permitiu escapar ao tédio das novelas diurnas (ela integrava o elenco de "As the World Turn", interpretando duas meias-irmãs), e a ajudou a atrair a atenção de cineastas independentes como Altman e Louis Malle.

    "Tudo foi cumulativo", diz Moore. "Nunca tive um grande salto. Tudo aconteceu pouco a pouco e, francamente, não acredito que estou trabalhando com isso há tanto tempo, e que consegui sucesso". Ela acrescenta: "As pessoas dizem que sou corajosa, que sou um atriz ousada. Mas coragem tem a conotação de que você precisa ter medo. Não tenho medo real de coisas imaginárias. Gosto disso. Gosto de grandes narrativas, de grandes sentimentos. Ter um sentimento não mata".


    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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