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    Crítica: Prosa poética de 'Matusalém de Flores' é minada por digressões

    MARCELO O. DANTAS
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    29/11/2014 02h39

    O Matusalém bíblico, avô de Noé, viveu exatos 969 anos. Alguns livros passam disso. Em geral, os muito bons. Não será o caso de "Matusalém de Flores" (ed. Boitempo), o mais recente romance do acadêmico gaúcho Carlos Nejar.

    Nascido prematuro, o livro naufraga em suas próprias contradições. Tão cheio está de ambições desmedidas, tão confiante se mostra em sua altiva gnose da palavra, que o voo da vaidade se converte em falha trágica. E tudo vem abaixo.

    Noe Matusalém, o protagonista, surge ao início do livro como um sábio de província, devorador de livros e dono de ideias peculiares. Ele cedo encontra no cão Crisóstomo, vira-latas dado à prosopopeia, um fiel companheiro.

    Cremos estar diante de um Quincas Borba dos pampas, com vocação para Grande Mentecapto. A proposta soa convidativa. Mas logo o autor a abandona.

    Tão pronto Matusalém encontra a insólita Lídia, a narrativa colapsa. Os dois se apaixonam, se casam e passam a divagar sobre o amor com um lirismo tão despropositado que chega a constranger o leitor.

    Matusalém vai-se metamorfoseando, a seguir, em diferentes modelos literários, assumindo, ao sabor dos episódios, características de Quixote, Jean Valjean ("Os Miseráveis"), José Arcadio Buendía ("Cem Anos de Solidão"), Bento Gonçalves e Moisés.

    Até mesmo seus momentos de Caboclo Ubirajara ele chega a ter.

    As transformações do protagonista acompanham a deriva da trama, que mergulha no realismo mágico, sem respeitar os cânones do gênero.

    A prosa poética do autor e o seu pendor ao comentário filosófico-social casam mal com os episódios de pombos-homens, pragas, guerra, seca, crise econômica e cura de leprosos. As alegorias soam forçadas e as excessivas digressões sufocam a narrativa, transformando a trama em mero enunciado.

    Matusalém de Flores
    Carlos Nejar
    livro
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    Não há real substância em "Matusalém de Flores". Em vez de personagens, temos apenas caricaturas –fantasmas com nomes, que surgem e desaparecem, sem deixar rastros. Em lugar de uma história, mera sucessão de pretextos às digressões do autor.

    Alguns trechos chegam a ser belos. Mas nunca estão integrados a um todo coeso. Pelo contrário, nota-se que as meditações poético-filosóficas de Nejar antecedem a trama e que a impedem de se desenvolver.

    Só o que parece importar são as certezas do autor. E elas cansam, como um bolo feito só de cerejas.

    MATUSALÉM DE FLORES
    AUTOR Carlos Nejar
    EDITORA Boitempo
    QUANTO R$ 43 (216 págs.)
    AVALIAÇÃO regular

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