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    Repórter que passou 118 dias preso no Irã vira protagonista de filme

    DAVE ITZKOFF
    DO "NEW YORK TIMES"

    08/12/2014 16h00

    Para alguém que passou 118 dias aprisionado no Irã depois de cobrir a polêmica eleição presidencial do país em 2009, o jornalista iraniano Maziar Bahari demonstra surpreendente senso de humor quanto ao acontecido.

    Se "Rosewater", o filme de Jon Stewart que narra a história de seu encarceramento obtiver qualquer sucesso, "o crédito na verdade deveria ficar com o governo iraniano", disse Bahari ironicamente em recente entrevista.

    Naquela manhã de outubro, Bahari, 47, estava sentado ao lado de Stewart em uma sala de reuniões do "Daily Show", o programa de sátira ao noticiário que Stewart apresenta no canal Comedy Central.

    Estar ali, em Manhattan, disse Bahari, era tão arriscado quanto voltar ao Irã, se levarmos em conta "todas as pessoas que detestam Jon, de sionistas radicais a islâmicos radicais".

    Com um sorriso, Stewart comentou: "Estou realmente unindo o mundo".

    Essa é a atitude sarcástica que o público espera de Stewart, cuja fama nasceu das verdades bem humoradas que diz sobre líderes incompetentes, instituições falhas e a mídia noticiosa que os cobre.

    Mas "Rosewater", sua estreia como diretor e roteirista de longas, destaca o lado sincero e sério de Stewart, 51, veterano dos programas noturnos de comédia e, longe das câmeras, perceptivelmente maltrapilho. ("Ele sempre parece estar disputando um papel em 'Oliver Twist'", disse Bahari.)

    PRISÃO

    Bahari, nascido em Teerã, capital iraniana, estudou cinema e comunicações em Montreal, no Canadá, e estava entre as centenas de observadores e manifestantes capturados pelo governo iraniano em junho de 2009.

    Naquele momento, ele havia se tornado colaborador frequente de veículos como a revista "Newsweek" e a BBC, cobrindo a eleição presidencial iraniana e os protestos que se seguiram quando, em meio a alegações de irregularidades, Mahmoud Ahmadinejad foi declarado vencedor diante de candidatos reformistas como Mir Hussein Moussavi.

    Bahari também apareceu em um vídeo do "Daily Show" poucos dias antes de ser preso, em uma entrevista ao correspondente Jason James (que se queixou, brincando, de sua "duplicidade de homem ocidental e repórter da 'Newsweek'").

    Mas Bahari diz que o "Daily Show" não foi responsável por sua detenção.

    "Eu já estava sendo monitorado", disse, e quando o governo iraniano viu sua participação, "eles juntaram um e um, e descobriram que o resultado era 11".
    Stewart acrescentou: "Por mais que a gente goste de acreditar na excepcionalidade dos Estados Unidos, não houve muitos momentos do tipo, 'opa, foi culpa nossa'".

    Depois de meses de pressão de líderes e da mídia internacional (o "Daily Show" chamou a atenção para o encarceramento de Bahari), ele foi libertado em outubro de 2009 da prisão de Evin, no Irã, sob fiança de US$ 300 mil (R$777,5 mil).

    Bahari, cujo pai também foi encarcerado (pelo xá do Irã, antes da Revolução Islâmica de 1979), e cuja irmã terminou presa por ordem do aiatolá Ruhollah Khomeini, descreveu seu cativeiro como "uma mistura de Kafka e Monty Python".

    Ele contou que se sentia especialmente fascinado por seu interrogador e torturador pessoal, um membro da Guarda Revolucionária iraniana a quem ele apelidou "Rosewater" [água de rosas], por conta do cheiro forte da colônia que ele usava. O interrogador disse a ele acreditar que Bahari participasse de orgias e recebesse massagens sexuais como parte de suas missões jornalísticas.

    "Você tem um torturador que deveria ser esse cara sério, ideológico", contou Bahari, "mas ao mesmo tempo ele é como um moleque de 14 anos com espinhas na cara, e tarado como um adolescente".

    O jornalista, que agora vive em Londres, se tornou convidado frequente do "Daily Show", e Stewart ficou fascinado pela narrativa que ele transformou em um livro de memórias de grande sucesso de vendas, intitulado "When They Came for Me" [quando vieram me prender].

    "Não é uma polêmica, não é uma diatribe", disse Stewart. "É uma história muito bem tecida sobre as gerações de estrago causadas por regimes opressivos".

    Stewart encorajou Bahari a tentar uma adaptação cinematográfica do livro, que ele pretendia produzir até que decidiu se envolver de maneira mais direta.

    "Foi mais por impaciência do que qualquer outra coisa", disse Stewart, explicando por que se tornou roteirista e diretor do filme. No "Daily Show", ele afirma, "estou acostumado a ter uma ideia idiota às 9h e vê-la no ar às 18h, e depois posso deixá-la para trás. O ritmo do desenvolvimento de um filme, muito mais glacial, parecia frustrante".

    Na metade de 2013, Stewart tirou sua primeira licença longa do "Daily Show", no comando do qual foi substituído pelo convidado John Oliver, e partiu para Amã, na Jordânia, (que serviria como substituta de Teerã), acompanhado pelo que define como "uma equipe muito básica": um diretor de arte, um diretor de fotografia, um assistente de direção "e praticamente só", a fim de fazer seu filme.

    Mas ainda que esteja no comando das operações de paródia jornalística do "Daily News" há 15 anos, Stewart disse que "um filme é coisa completamente diferente".

    Com a equipe de "Rosewater", afirmou, "eu precisava contar com a experiência deles. Eu me sentava com eles e dizia que precisava de um grande mural de Khomeini em um muro sobre um viaduto, e eles respondiam que achavam que não ia rolar. Para não mencionar os protestos que isso causaria na Jordânia sunita" —-Stewart contou que essa dificuldade específica foi resolvida por "10 caras que ergueram um painel de fundo verde de três por seis metros".

    COLABORATIVO

    Gael García Bernal, que interpreta Maziar Bahari na tela (em companhia de Kim Bodnia, no papel de Rosewater), disse que a falta de experiência de Stewart fez dele um diretor mais colaborativo e tornou mais empolgante a realização do filme.

    Recordando seus preparativos para o filme, García Bernal disse que "tudo que eles me diziam parecia incrível. 'Vamos filmar na Jordânia'. Perfeito. 'O calor será de rachar'. Perfeito. 'Vamos filmar no Ramadã'. Viva! O plano parecia ótimo, pode ter certeza".

    Que ele seja um ator nascido no México interpretando um personagem nascido no Irã não tem importância, disse García Bernal. "Sou ator, portanto posso fazer seja qual for o papel", ele comentou, rindo. "Posso interpretar um marciano sem nunca ter ido a Marte".

    "Rosewater" obteve algumas resenhas positivas no circuito dos festivais de cinema, e a revista "Variety" elogiou o filme por seu "tato e inteligência impressionantes", definindo-o como "um longa de estreia confiante, e com interpretações soberbas". Escrevendo sobre o longa no "New York Times", A. O. Scott afirmou que "Stewart, o mais conhecido dos criadores de falsos noticiários, provou ser um cineasta de verdade".

    Stewart, porém, vê continuidade entre "Rosewater" e seu trabalho no "Daily Show". O impulso de elogiar jornalistas que exercem sua profissão honradamente e sob condições perigosas, ele disse, não difere tanto da
    tentação de zombar deles quando não são capazes de satisfazer os padrões da profissão.

    "A única razão para zombar de alguma coisa é que ela não fique à altura de seus ideais", ele disse. "Existe uma grande diferença entre o que esses jornalistas fazem em seu trabalho e a perversão desse trabalho que as redes de notícias 24 horas praticam".

    Levar "Rosewater" às telas, disse Stewart, não tinha por objetivo apresentá-lo aos espectadores como diretor, mas sim permitir que ele ganhasse conforto com uma forma de narrativa na qual a história não derive totalmente dele mesmo.

    "Jamais fui parte da audiência para algo que eu mesmo tenha feito", ele disse. "Sempre estive no palco. As pessoas olham para mim. Foi maravilhoso poder assistir a alguma coisa que eu fiz e comer salgadinhos ao mesmo tempo".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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