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    Exposição em Paris escancara colaboração francesa com nazismo

    MAÏA DE LA BAUME
    DO "NEW YORK TIMES", EM PARIS

    23/12/2014 13h15

    O telegrama assinado em 1942 por um dos mais altos funcionários do regime colaboracionista de Vichy, na França, instava os governantes locais da região não ocupada do país a supervisionar "pessoalmente" a transferência de milhares de judeus a campos de deportação.

    "O chefe de Estado deseja que o senhor tome controle pessoal das medidas empreendidas com relação aos judeus estrangeiros", escreveu René Bousquet, então chefe de polícia em Vichy. "O senhor não deve hesitar em destruir qualquer resistência que possa encontrar entre essas populações".

    O telegrama era parte do arquivo judicial de Bousquet quando ele foi formalmente acusado de crimes contra a humanidade, em 1989, por organizar a detenção de judeus e ordenar a deportação de crianças judias. (Ele havia em geral escapado a punições por sua colaboração com o nazismo na guerra, do final do conflito até então, mas foi assassinado em 1993 enquanto as acusações contra ele estavam sendo investigadas.)

    O telegrama, em papel amarelecido pelo tempo, é parte dos 300 documentos, entre os quais cartas, fotos, itens pessoais, cartazes, arquivos policiais e livros, que estão em exposição no Museu dos Arquivos Nacionais em Paris.

    A mostra, intitulada "Colaboração 1940-1945", ficará em cartaz até 2 de março e é uma das primeiras dedicadas à cooperação dos franceses com os alemães, durante a guerra. Ela é parte da série de comemorações que marcam o 70º aniversário da libertação da França do domínio nazista.

    LIVROS, FILMES E SÉRIES

    O tema do colaboracionismo recentemente vem sendo explorado em livros, filmes, documentários e até séries de TV, como "Un Village Français", cuja primeira temporada foi ao ar em 2009. Tudo isso é parte de um acerto de contas mais amplo da França para com seu inglório passado.

    A percepção dos franceses sobre como o país se comportou durante a ocupação mudou. Inicialmente, a França era retratada como uma nação de resistência, mas nos anos 90 o presidente Jacques Chirac começou a admitir os "delitos coletivos" de seu país.

    Hoje, historiadores definem o colaboracionismo francês como aliança política, administrativa, econômica, militar, ideológica e cultural com os nazistas. Mas "os comportamentos diferiam" de pessoa a pessoa, disse Denis Peschanski, especialista na França de Vichy e um dos curadores da mostra.

    Peschanski disse que a exposição distingue entre os colaboracionistas e os colaboradores —"entre aqueles que se aliaram inteiramente aos ocupantes e aqueles que se acomodaram às circunstâncias". Os colaboracionistas não ajudavam os alemães simplesmente para seguir as ordens de Vichy, ou para buscar lucro pessoal, mas buscavam promover o ressurgimento da França por obra do domínio nazista, ele afirma.

    A despeito de seu foco provocativo, a mostra atraiu resposta contida mas no geral positiva na França.

    Por dois anos, cinco curadores, entre os quais Peschanski, se aprofundaram nos arquivos regionais, nacionais e estrangeiros a fim de documentar as dimensões do componente ideológico na colaboração francesa. A mostra, que também inclui material emprestado por coleções particulares, traça a cronologia da colaboração, do armistício assinado com a Alemanha em 1940 ao julgamento por traição do marechal Philippe Pétain, o líder do regime de Vichy, em 1945. Ela abarca seis salas, cada qual ilustrando um tema, entre os quais ações conjuntas das polícias francesa e alemã.

    Os visitantes percorrem os corredores ao som de canções da era da guerra e discursos de Pétain e de Pìerre Laval, o ministro chefe de Vichy.

    "Quero que a Alemanha vença porque, sem ela, o comunismo se estabelecerá em toda parte", disse Laval em um discurso em 1941.

    Ainda que o governo francês tenha aberto a maior parte de seus arquivos sobre o colaboracionismo nos anos 70, a exposição exibe alguns documentos que estão sendo mostrados pela primeira vez, entre os quais uma carta do conhecido romancista Louis-Ferdinand Céline elogiando o escritor colaboracionista Lucien Rebatet por seu longo panfleto "Les Décombres", [os escombros]. O livro, escrito em 1942, apelava pelo assassinato dos judeus.

    "Que bonito, completo, repleto de infecciosa perfeição tudo isso é!", escreveu Céline.

    Entre as imagens raras da mostra está uma foto do embaixador de Hitler em Vichy, Otto Abetz, em companhia de Pétain e Laval. A foto foi tirada horas antes do famoso momento em que Pétain apertou a mão de Hitler em Montoire, no centro da França.

    Em outra foto, tirada em 3 de julho de 1942, Pétain, Laval e o chefe de polícia Bousquet são vistos saindo de uma reunião de ministério em Paris pouco depois que Laval anunciou ao seu governo que a França organizaria a maior detenção em massa de judeus da era da guerra, conhecida como "a coleta de Vel d'Hiv". Em poucos dias, mais de 13 mil pessoas foram recolhidas para deportação a campos de extermínio.

    A exposição oferece um raro vislumbre dos líderes, da propaganda violenta e da retórica da colaboração. As coleções incluem insígnias, folhetos, cartas e outros itens pertencentes a políticos abertamente fascistas, como Jacques Doriot, fundador do Partido Popular Francês, ultranacionista; Joseph Darnand, que mais tarde se alistou nas Waffen-SS [a porção combatente da SS nazista]; e Marcel Déat, que acreditava em uma Europa dominada pelo nazismo e queria que o regime de Vichy fosse adiante em sua adoção da ideologia fascista.

    Os visitantes podem ler o diário de Déat, no qual ele relata seu encontro com Paul Marion, então secretário geral da informação de Vichy.

    "Marion quer tratar os franceses como povo doente e realizar propaganda psiquiátrica", escreveu Déat. "Ele é um verdadeiro colaboracionista, e grande inimigo dos britânicos. Em resumo, tem boas intenções".

    Outra sala mostra o baú que Doriot levou à frente oriental depois de se alistar em uma unidade francesa do exército alemão.

    O historiador Tal Bruttman disse que a força da exposição estava nas suas percepções sobre a importância da ideologia para o colaboracionismo.

    "Na França, por muito tempo pensamos que a colaboração não era um compromisso ideológico, e víamos os colaboracionistas como simples aproveitadores", ele afirmou. "Mas eles eram também nazistas franceses".

    NAZISMO NA VIDA COTIDIANA

    A exposição também demonstra a presença da ideologia na vida cotidiana francesa, por meio da imprensa, literatura e arte. Há jornais, livros, cartas, cartazes e cartuns denunciando os judeus, comunistas e maçons.

    Cartazes de exposições de grande sucesso, entre as quais uma intitulada "Bolchevismo Contra a Europa", realizada na Salle Wagram, um auditório parisiense que vivia seu apogeu, também estão presentes, e o mesmo vale para uma recriação da vitrine da Librairie Rive Gauche, a livraria que vendia os best sellers dos colaboradores da era, incluindo o "Pequeno Catecismo Antijudaico", de Adrien de Boisandré, escrito décadas antes.

    Muitos dos documentos mostram a dimensão da censura alemã. Incluem uma lista elaborada pelos alemães de 1.060 livros vistos como antinazistas, anglófilos ou de autores judeus, todos destinados à destruição.

    A mostra causou conferências, debates, exibições de filmes e oficinas sobre a França em tempo de guerra e as políticas antissemitas de Vichy. Entre esses eventos está uma oficina na qual crianças estudam cartazes da era —"os símbolos, cores e técnicas gráficas" da propaganda, de acordo com o site dos Arquivos Nacionais franceses.

    A oficina, afirma o site, tem por objetivo "encorajar as crianças a examinar as questões da legitimidade do poder e da 'desobediência'".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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