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    Crítica: Tragédia ofusca brilho cínico de 'Submissão', de Houellebecq

    LUÍS AUGUSTO FISCHER
    ESPECIAL PARA A FOLHA, DE PARIS

    10/01/2015 02h00

    Submissão é, para a consciência do mundo moderno, tudo de mais reprovável que pode haver. O pressuposto número zero do Ocidente é a liberdade, e a luta por ela é a mais digna possível. Michel Houellebecq, escritor e figura central de polêmica na França, escolheu a palavra para título do seu novo romance.

    O leitor fica logo sabendo que "submissão" é uma tradução literal de "islã", o que nos leva à atualidade –o Estado Islâmico, a islamofobia, a força do islamismo, tudo isso e mais isto: o ataque contra o "Charlie Hebdo", feito para vingar o profeta do islã, satirizado nas páginas do semanário.

    Na última edição antes do crime, que definiu "Submissão" como "golpe de mestre", a capa era uma caricatura de Houellebecq, também ele alvo de blague. Após o atentado, o autor cancelou a divulgação da obra e deixou Paris.

    Miguel Medina/AFP
    Autor francês Michel Houellebecq
    Autor francês Michel Houellebecq

    Não há modo de ler o romance sem esse horizonte, que para o Brasil é distante, mas para a Europa existe e agora se impôs, com 12 mortes no ataque ao jornal.

    Protagonizado por personagem típico da ficção houellebecquiana, à deriva na vida, cético ao ponto do niilismo, anômico, o romance é narrado como rememoração.

    Trata-se de François, professor da Sorbonne, especialista em J.K. Huysmans, autor que renegou o naturalismo em favor da atitude mística, convertido no fim da vida a um catolicismo regressivo. São dois casos, espelhados com cem anos de distância, de "estetas misantropos e solitários". François descrê de tudo, dos laços afetivos duradouros à social-democracia e ao chamado "humanismo".

    Mesclando comentários cínicos ao mundo intelectual e político com uma rotina de prazeres politicamente incorretos, o livro arma sua fantasia: em 2022 é eleita à Presidência da França a Fraternidade Muçulmana. Derrotou a direita da Frente Nacional (esta real, de Marine Le Pen) em aliança com a esquerda do atual presidente, Hollande, e o centro do ex, Sarkozy.

    A nova realidade se faz sentir. Acaba o desemprego, porque as mulheres devem viver em casa. Aumenta o orçamento para auxílio-moradia, mas diminui o da educação, agora só obrigatória até os 12 anos de idade.

    POLIGAMIA

    Na Sorbonne, cuja fachada ostenta um crescente, as funcionárias usam véu; mais ainda, o pensamento será vigiado. Um colega medíocre se converte à nova religião, adota a poligamia, agora estimulada, e com isso ganha o triplo do salário –a universidade tem fundos imensos, dotados por um nababo saudita. E François é induzido a se aposentar, precocemente.

    Meses adiante, é convidado a voltar à universidade. A proposta vem de um nietzschiano, carreirista e já convertido (a mulher mais nova tem 15 anos e usa camiseta da Hello Kitty), agora no poder. Oferece a François seu livro "Dez Questões sobre o Islã", em que concilia a defesa das ideias muçulmanas com a teoria da seleção natural, com a moderna ecologia, com a visão elitista de Nietzsche.

    François acompanha tudo com a mesma indiferença explícita, amoral, numa neutralidade chocante, mas eficaz como estratégia narrativa.

    Na França, os conservadores celebram a obra ("singular gênio da angústia cômica", no "Le Fígaro"), lendo-o como projeção realista do presente; a esquerda e os humanistas, alvo preferencial dos longos trechos argumentativos do livro, o abominam por dar água ao moinho conservador (romance "medíocre", segundo "Le Monde").

    O livro será alvo de debates menos por suas virtudes literárias e sua visão ácida do mundo intelectual e mais por seu senso de oportunidade histórica e namoro com posições políticas reacionárias. Só não há mais futuro para os mortos do jornal que era, no dia do atentado, mais um a dar palco a Houellebecq.

    Luis Augusto Fischer é professor de literatura da UFRGS e autor de "Machado e Borges" (Arquipélago), entre outros.

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    AUTOR Michel Houellebecq
    EDITORA Flammarion (importado)
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