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    Craque dos clássicos em HQ, Guazzelli desenha cidade fictícia há 25 anos

    RAQUEL COZER
    COLUNISTA DA FOLHA

    24/01/2015 08h47

    Até onde pode lembrar, Eloar Guazzelli, 52, só não desenhou em dois dias de sua vida adulta. Foram dois dias de maio de 2005, quando sua filha, com uma semana de vida, teve pneumonia e foi parar na UTI. A pausa durou até ser descartado o risco de morte, e aí o artista voltou a seus afazeres, ainda no hospital.

    Esse pendor para o desenho em tempo integral torna Guazzelli onipresente até entre quem não o conhece. Só de livros infantojuvenis, quase 70 têm ilustrações suas, como "Histórias de Mistério" (Companhia das Letras), de Lygia Fagundes Telles, e "A Árvore dos Desejos" (Cosac Naify), de William Faulkner.

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    Nesta semana, seu trabalho chegou aos cinemas paulistanos, em "Até que a Sbórnia nos Separe", de Otto Guerra e Ennio Torresan Jr. A animação tem o traço de Guazzelli, que dividiu com Pilar Prado a direção de arte, premiada em Gramado.

    "Tenho cinco profissões", diz o gaúcho, criado em Porto Alegre e hoje em São Paulo. "Tenho diplomas de artista plástico e professor. Pago impostos como ilustrador editorial. Na carteira de trabalho, sou diretor de cinema. E tem os quadrinhos."

    Um de seus trabalhos mais recentes, a adaptação em HQ de "Grande Sertão: Veredas" (Biblioteca Azul), de João Guimarães Rosa, quase caberia num sexto segmento.

    Pela primeira vez, foi convidado não a ilustrar uma HQ, mas a fazer apenas o roteiro. A editora, diz Rodrigo Rosa, autor das ilustrações, queria um ar de "quadrinhos de aventura clássica" que não poderia ser mais distante do traço solto de Guazzelli.

    "Eles ficaram com medo de me ofender. Não chega a ser bobagem. Alguém no meu lugar poderia ficar ofendido", pondera Guazzelli. "Mas chamaram um desenhista que admiro. E fiquei feliz por ser reconhecido com roteirista."

    NICHO

    Expertise em adaptações não faltava. Das oito HQs longas de Guazzelli até então, só as duas primeiras, de 2007, são autorais. Em 2008, já veterano em ilustrar livros infantis, foi convidado a adaptar "O Pagador de Promessas" (Agir), de Dias Gomes.

    O livro saiu em 2009, quando editoras apostavam no potencial de adaptações em HQs nas compras de governos. Na sequência, Guazzelli fez mais cinco, incluindo "A Escrava Isaura" (Ática), de Bernardo Guimarães, com roteiro de Ivan Jaf, e "Demônios" (Peirópolis), de Aluísio Azevedo.

    Mas adaptar só texto, como em "Grande Sertão", era algo novo, e a solução de Guazzelli foi... desenhar. "É um outro livro", diz o gaúcho, e puxa para o centro da mesa de seu estúdio, num predinho antigo na av. São João, em São Paulo, a "versão do roteirista", volume com 200 páginas esboçadas, que serviu de base a Rodrigo Rosa.

    O ilustrador achou o resultado "bonito de ver", mas preferiu usar "como guia mais de texto do que de arte".

    Apesar de quadrinistas lamentarem a euforia editorial com adaptações de clássicos, em prejuízo de obras autorais, Guazzelli relativiza. "Adaptações não tiram espaço da obra autoral, são outro nicho."

    Nesse nicho, acostumou-se a passar pelo "vestibular da família" –o aval de herdeiros– e encontrou um ganha-pão. Leva de 2% a 10% do valor pelo qual os governos compram os livros. "Não é uma fortuna, mas ajuda."

    O artista tem mais duas adaptações a caminho, "O Bem Amado", do Dias Gomes, para a Nova Fronteira, e "Vidas Secas", de Graciliano Ramos, com roteiro de Arnaldo Branco, para a Record.

    E, quando a WMF Martins Fontes lhe abriu espaço para publicar o que quisesse, apresentou seu próprio projeto de adaptação, que saiu quase junto com "Grande Sertão".

    "Kaputt", baseado em textos de guerra do italiano Curzio Malaparte, é dedicado "a um outro Eloar, meu pai", que lhe apresentou o autor.

    Eloar Guazzelli, o pai (1922-1994), é figura célebre. Advogado de presos políticos durante a ditadura, defendeu, como escreveu em 1991, 378 acusados –entre eles Tarso Genro e Carlos Araújo, ex-marido de Dilma Rousseff. Dizia que de apenas 20 não foi possível evitar a condenação.

    CIDADE NANQUIM

    O pai mantinha a casa cheia de obras literárias, que alimentariam os interesses artísticos do filho caçula. Só não queria saber de quadrinhos –tão vetados para a esquerda da época por serem capitalistas como para a direita, por pecaminosos.

    A convicção não impediu que o garoto, o Alemão Guazzelli, como ficou conhecido, enveredasse para a arte proibida nos anos 1980.

    Nessa época, influenciado por quadrinhos argentinos, conheceu o produtor Otto Guerra. Um dos primeiros trabalhos da dupla, o curta "O Reino Azul", renderia o primeiro da extensa lista de prêmios de Guazzelli, no Festival de Havana, em 1989.

    Desse tempo vem também seu "projeto de vida" –uma cidade imaginária que vem desenhando há 25 anos.

    A "Cidade Nanquim", painel com quatro folhas A4 de altura e dezenas de folhas de largura, foi exposta pela primeira vez 1993 e hoje tem 30 m de largura –metade do que Guazzelli quer. Quando chegar a 800 folhas, sairá como livro de páginas destacáveis pela espanhola Mediavaca.

    Essa é também a obra de Guazzzeli mais lembrada por colegas ao colocá-lo num patamar de gênio ou louco.

    "A conceituação de gênio passa por esse estupor que se sente com uma obra. Em geral, a gente intui de onde vêm as ideias, mas, ao ver a cidade do Guazzelli, não sabemos de onde ele tirou aquilo", diz a cartunista Laerte.

    "Ele é 'freak'", diz o colega Allan Sieber. "Desenha o tempo todo. Fala com você com um bloco, desenhando, mas não esses desenhos que a gente faz à toa, e sim um trabalho pelo qual será pago."

    Guazzelli agora cria a HQ "Porto Alegre", sem editora, sobre seu período na cidade. A trama é guiada pela morte de sua mãe, em 2012. Nesse dia, ao contrário daquele em que a filha foi internada, Guazzelli desenhou. Na imagem, um molusco atravessa uma rua. A linha dos prédios ao fundo, feita após a notícia, aparece levemente tremida.

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