• Ilustrada

    Monday, 20-May-2024 08:29:01 -03

    Dalton vive miséria para escarafunchá-la

    MANUEL DA COSTA PINTO
    COLUNISTA DA FOLHA

    24/01/2015 02h10

    Prestes a completar 90 anos, Dalton Trevisan tem quase 50 livros na bagagem, em geral compostos por contos habitados por maníacos que buscam no sexo uma epifania que apenas aprofunda a condição de pobres diabos.

    E isso numa Curitiba que, de tanto ter suas praças cinzentas e seus quartos de pensão esquadrinhados, foi compondo uma espécie de espaço mítico rebaixado, ou que faz do rebaixamento uma forma de criar uma mitologia infernal, escorada na repetição de taras e obsessões dentro de narrativas cada vez mais elípticas.

    Em "O Beijo na Nuca", temos um livro diferente, sem erotismo explícito e no qual Curitiba só aparece de relance.

    Os contos continuam curtos, mas comparativamente mais longos do que as cenas microscópicas e os diálogos que compunham coletâneas como "Pico na Veia" (2002), "Arara Bêbada" (2004) ou "O Anão e a Ninfeta" (2011).

    E, sobretudo, são contos de caráter bastante imagéticos, de caráter lírico, evocativo.

    Os pobres diabos continuam lá, como o suicida do conto "Nicanor", que mede a vida em cálices de conhaque e citações roubadas, ruminando como um Drummond da sarjeta.

    "Ai, vida, ai, vidinha besta, rumo ao banco na sombra, à espera vã de uma epifania."

    E das tais epifanias, agora despidas de obscenidades, só resta a retórica de bolero que havia em "Desgracida" (2010): "No exílio das muitas águas chorei amores perdidos", escreve em "A Ilha".

    EXPORTAÇÃO

    Sabe-se lá se o "vampiro de Curitiba" algum dia abandonou seu tugúrio, onde vive encastelado recusando entrevistas e indiferente a honrarias –como o prêmio Camões, "Nobel da língua portuguesa" que lhe foi atribuído em 2012–, para viajar pela Europa.

    O Beijo na Nuca
    Dalton Trevisan
    livro
    Comprar

    O fato é que "O Beijo na Nuca" exporta a provinciana Curitiba para cidades como Roma ou Munique.

    Em "Viena", por exemplo, a metáfora cosmopolita da Belle Époque, a cidade de Sigmund Freud e Gustav Mahler, é reduzida à imagem desoladora de um vetusto parque de diversões, com seu carrossel e seus quiosques por onde uma velha empurra um velho sem pernas na cadeira de rodas.

    E, em "Alhambra", os átrios e serralhos de Granada, recendendo a tâmaras, damascos e nenúfares, são imagens cuja languidez passaria por clichê de revista popular se não percebêssemos, à espreita, o olhar de um autor que contempla, entre sádico e compassivo, os risíveis sonhos de escapar da miséria que ele vive para escarafunchar.

    O BEIJO NA NUCA
    AUTOR Dalton Trevisan
    EDITORA Record
    QUANTO R$ 32 (144 págs.)
    AVALIAÇÃO bom

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024