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    Ivana Arruda Leite exorciza seus homens cachorros

    BARBARA GANCIA
    DE SÃO PAULO

    31/01/2015 02h20

    Ela conheceu a receita para o sucesso sacolejando por uma estrada tortuosa. Para chegar até a suíte executiva da "penthouse" do Shangri-lá, a escritora Ivana Arruda Leite, 63, sobreviveu a uma existência de fracassos profissionais, desilusões amorosas e de trancos e barrancos com a ordem e a insubordinação.

    Passou 30 anos batendo cartão como funcionária pública em dois empregos distintos, que detestava, e levando uma existência que não era a dela, até o fatídico encontro transformador de vida com o amigo editor da conhecida do padrinho da tia da manicure. É sempre assim, não?

    Sua vida pessoal teve uma temperatura constante entre o "doidivana", nome do blog que escreve para registrar o mundo ao redor (doidivana.wordpress.com), e o apocalipse.

    Fabio Braga/Folhapress
    A escritora Ivana Arruda Leite, 63, que lança dois livros de conto
    A escritora Ivana Arruda Leite, 63, que lança dois livros de conto

    Nascida em Lins, em 1951, transferida com a família para a capital aos 8 anos e curtida e cozida entre o bairro de Pinheiros e o curso de Ciências Sociais da USP, por imposição daquilo que na época parecia ser a quase soma de toda a humanidade, acabou se casando com o menino certinho, bancário do bairro do Belenzinho.

    Nada a ver. Veio a separação, depois de uma filha a quem todos os livros são dedicados, e uma eternidade jogada fora em noitadas infelizes antes que pudesse se concentrar exclusivamente nos altos e baixos das Leocádias e Dolores, personagens de seus contos.

    "Essa mulher sobre a qual eu escrevo, ela deu errado", explica. "Ela não é bonita, está num emprego horroroso, é mal sucedida." Puxa.

    "Deu errado, muito errado", enfatiza como se estivesse falando de suas próprias topadas enquanto o dedão ainda lateja.

    Tentativa de suicídio misturando Lexotan com uísque depois de um feriadão de chuva, desamparo, bares e depressão.

    Entendi.

    O que na vida real é desgraça, no imaginário da menina espevitada do interior, que depois de ler Monteiro Lobato passou a entupir gavetas com as folhas de seus escritos, se materializa nas desventuras que ora recheiam o lançamento, "Contos Reunidos", uma edição garbosa produzida pelo selo paulista Demônio Negro de histórias já publicadas.

    Ou noutro lançamento simultâneo, pelo mesmo selo, do inédito "Cachorros", título que não versa sobre temas ligados à cinofilia, pasme, mas rende homenagem à expressão mais usada por Ivana para humilhar os (des)amores de sua vida.

    RECEITA

    Sua "Receita para Comer o Homem Amado" também pode confundir até a cozinheira mais experimentada:

    "Pegue o homem que maltrata, estenda-o sobre a tábua de bife, comece a sová-lo pelas costas. Depois pique bem picadinho e jogue na gordura quente. Acrescente os olhos e a cebola. Mexa devagar até ficar dourado. A língua, cortada em minúsculos pedaços, deve ser colocada em seguida, assim como as mãos, os pés e o cheiro verde. Quando o refogado exalar o odor dos que ardem no inferno, jogue água fervente até amolecer o coração. Empane o pinto no ovo e na farinha de rosca e sirva como aperitivo. Devore tudo com talher de prata, limpe a boca com guardanapo de linho e arrote com vontade, pra que isso não se repita nunca mais."

    Rodada no divã, para Ivana não foi Freud quem a redimiu. "Quem salvou a minha vida foi a literatura", sentencia.

    Em 1991, a escritora que hoje é reconhecida por sua obra (seu "Ao Homem que Não Me Quis" foi finalista do Prêmio Jabuti em 2006) batia ponto na Secretaria do Bem Estar do Campo Limpo, em um emprego do qual não tem saudades. Pule para 2015 e Ivana dá-se ao luxo de levar vida de aposentada. "Faço pilates e musculação."

    Pois é. Literatura é boa e a gente gosta.

    "Sempre fui a outra", diz sem se importar em dar bandeira sobre o grau de intimidade com suas personagens –que despertam tanta empatia em quem as descobre quanto a vida pregressa da autora.

    Seja essa mulher imaginária a pobretona patética, que gasta todo o salário no jantar do restaurante grã-fino dos Jardins. Ou a mãe que está no carro do namorado da filha quando ele sofre um acidente mortal. Ou, ainda, aquele protótipo de mulher previsivelmente dada a "amores servis".

    "Não acredito em final feliz", admite Ivana. "Eu mesma só comecei a assentar depois dos 60." Isso quer dizer que ela teria encontrado uma vacina contra os males do coração?

    "Não escrevo para dar conselhos a ninguém. Não faço autoajuda feminina e estou me lixando para o que as mulheres fazem de suas vidas. Cada um que cuide de si, homem ou mulher", esclarece. "Mas morro de dó de quem vive em função (do romance)."

    Alguém chorei, não sei quem fui?

    "Olha, quem cai nessa não entendeu nada", arremata.

    Anotado, Ivana. Em tinta indelével.

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