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    Autor cult colombiano, Andrés Caicedo ganha tradução tardia no Brasil

    RAQUEL COZER
    COLUNISTA DA FOLHA

    07/02/2015 02h01

    Pense na maior referência possível da literatura colombiana –o realismo fantástico de Gabriel García Márquez– e, então, esqueça tudo o que diz respeito a essa referência.

    É a melhor maneira de começar a entender Andrés Caicedo, autor de um romance só, "Que Viva la Música!". A obra de 1977 ajudou a causar uma reviravolta na produção literária latino-americana, mas passou décadas despercebida no Brasil.

    Arquivo de Família/Divulgação
    Retrato do escritor colombiano Andres Caicedo (1951-1977)
    Retrato do escritor colombiano Andres Caicedo (1951-1977)

    Narrado por uma garota rica e loira que se joga no submundo de festas e drogas da Cáli dos anos 70, o romance foi eleito pelo jornal colombiano "El Espectador" o segundo mais importante da literatura daquele país no século 20 –o primeiro foi "Cem Anos de Solidão", de Gabo.

    Apesar disso, só agora chega ao Brasil, pela editora Rádio Londres, com o título "Viva a Música!", na tradução de Luis Reyes Gil, e na esteira de um inédito reconhecimento internacional para o autor.

    Editado há tempos pela Alfaguara em países hispânicos, influência declarada para escritores como o argentino Fabián Casas e o chileno Alberto Fuguet, "Viva a Música!" chegou a França, Itália, Holanda, Inglaterra e Finlândia a partir de 2012. Além disso, acaba de ser adaptado ao cinema por Carlos Moreno –o filme foi exibido na semana passada em Sundance.

    SUICÍDIO
    Caicedo é ele próprio um personagem e tanto. Tímido e gago, era conhecido no círculo intelectual de Cáli como talento precoce. Aos 20 e poucos, já tinha criado um cineclube e uma revista de cinema e publicado o livro de contos "El Atravesado" (1975), bancado pela mãe.

    Escreveu "Viva a Música!" antes dos 23 anos. "Ele sabia que tinha feito algo importante", diz a irmã Rosario Caicedo, 64. Em 4 de março de 1977, aos 25, ele recebeu a primeira cópia da edição feita pela Colcultura. Horas depois, caiu morto sobre sua máquina de escrever, após ingerir 60 pílulas de sedativo.

    O romance explicava: "Antecipe a morte, marque um encontro com ela. Ninguém quer saber de crianças envelhecidas", diz a narradora, já perto do fim. "Se você deixar uma obra, morra tranquilo, confiando em uns poucos bons amigos."

    O suicídio não foi surpresa para ninguém que o conhecesse –nem poderia, visto que fora a terceira tentativa–, mas certamente ajudou a tornar Caicedo um autor cult.

    "A morte de Caicedo faz parte, hoje, da obra de Caicedo", argumenta o escritor colombiano Sandro Romero Rey, autor de "Andrés Caicedo o la Muerte sin Sosiego".

    "'Viva a Música!' é uma espécie de 'O Apanhador no Campo de Centeio' colombiano", define o cineasta Luis Ospina, diretor de dois documentários sobre o autor. "Todo mundo aqui lê, é nosso Salinger."

    Para Ospina, antes de "Viva a Música!" "toda a literatura na Colômbia era rural". "Esse foi nosso primeiro romance urbano, jovem, precursor do movimento McOndo", afirma, em referência ao jogo de palavra entre a fantástica aldeia Macondo, de "Cem Anos de Solidão", e o McDonalds, e que nomeou a corrente literária latina contrária ao realismo mágico.

    Rey e Ospina organizaram a obra póstuma de Caicedo, que inclui "Destinitos Fatales", de histórias curtas, e "Ojos al Cine", com 774 páginas de críticas de cinema.

    SALSA
    María del Carmen, a protagonista de "Viva a Música!", se deslumbra com o rock inglês, embora não entenda nada das músicas dos Rolling Stones (o que a faz dar colher de chá para Ricardito, o Miserável, pretendente que lhe traduz as letras ao pé do ouvido). Até que descobre a salsa da dupla popular Richie Ray e Bobby Cruz, passando por uma transformação cultural.

    Um apêndice ao fim do romance aponta mais de cem músicas citadas no texto, direta ou indiretamente, infiltradas na fala da narradora.

    Elas servem, na visão de Rosario Caicedo, para florear uma mensagem muito mais profunda. "O livro trata da angústia existencial de alguém que tenta sobreviver às pressões da sociedade", diz.

    Ospina resume essa angústia de modo contundente: "O mundo não foi feito para Caicedo". Isso ajuda a explicar por que, enquanto Gabriel García Márquez morreu aos 87 anos, seu oposto literário quis viver menos que um terço disso.

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