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    Obra de colombiano é pedra angular da ficção hispano-americana recente

    JOCA REINERS TERRON
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    07/02/2015 02h02

    "Viva a Música!" é desses raros instantes em que a realidade invade a literatura, arrastando a ficção pelo colarinho a um mundo desconhecido. A música, desde o título, não é pouca no romance de Andrés Caicedo: do ritmo oral que turbina a voz da adolescente María del Carmen à festa infinita de Cáli, cuja trilha sonora não passa de desespero e violência descontrolada rumo ao fim da noite.

    É providencial ler em voz alta este "tour de force" de 1977 para notar que o colombiano nunca escreveu de boca fechada. Evidência disso é a fala incessante da narradora, lourinha-belzebu que prima pelas marcas da juventude dos anos 70: ódio às convenções familiares, prática sexual pré-Aids (promíscua até dizer chega mais) e abuso da cocaína envolvida.

    Não que tais coisas sejam exclusivas do período, mas Caicedo as trata com a crença de que o consumo de drogas carrega qualquer sentido libertário. Eram tempos de formação de cartéis e da ascensão de Pablo Escobar, afinal, além da derrocada do espírito da década anterior. No romance, a droga representa oposição das mais puras, enquanto hoje está próxima da situação, usada politicamente pelas Farc e estatizada em outras partes do globo.

    Rebeldes mesmo só a salsa e a desfaçatez feminista da bailante protagonista e de algumas personagens secundárias, bem à vontade em ambientes tão machistas quanto as baladas ou as gangues.

    Ao som das "pachangas" de Richie Ray e Bobby Cruz, por exemplo, a personagem Mariângela diz a María del Carmen: "Os homens são uns tontos. Você pode manejar melhor do que eles aquele pintinho que eles te enfiam com tanto mistério".

    Pedra angular da ficção hispano-americana recente, influência de figuraças do século 21 como o argentino Washington Cucurto e seu realismo "atolondrado" (descuidado), "Viva a Música!" prova que a noite, "acúmulo de substâncias negras fuliginosas na atmosfera" (como disse dr. De Selby, criação do irlandês Flann O'Brian), é também soma desesperada de alegrias que implodem na mais incontornável tristeza.

    JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de "A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves" (Companhia das Letras), entre outros.

    VIVA A MÚSICA!
    AUTOR Andrés Caicedo
    TRADUÇÃO Luis Reyes Gil
    EDITORA Rádio Londres
    QUANTO R$ 29,90 (222 págs.)
    AVALIAÇÃO muito bom

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