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    Neta de Picasso planeja venda de obras do artista, preocupando o mercado

    DOREEN CARVAJAL
    DO 'NEW YORK TIMES', EM MARSELHA (FRANÇA)

    10/02/2015 12h45

    Desde que Marina Picasso era criança, vivendo quase na pobreza e esperando diante dos portões de uma mansão francesa com seu pai para implorar uma mesada de seu avô, Pablo Picasso, ela se esforça para carregar o ônus do enorme legado do artista.

    Quando estava na casa dos 20 anos e herdou a mansão oitocentista, La Californie, além de um imenso acervo de tesouros de arte de Picasso, ela virou os quadros para a parede, por ressentimento contra o avô. Ao longo de 15 anos de terapia, dissecou as amargas memórias familiares da indiferença de seu avô e do suicídio de seu irmão.

    Em sua autobiografia de 2001, "Picasso: My Grandfather", Marina escancarou sua dor e o rancor que sentia em relação ao clã Picasso.

    Albert Olive - 29.jan.2002/AFP
    Marina Picasso, neta do pintor espanhol Pablo Picasso, em foto de 2002, em Barcelona
    Marina Picasso, neta do pintor espanhol Pablo Picasso, em foto de 2002, em Barcelona

    Hoje, aos 64 anos, ela reconhece que está ampliando sua revolta, preparando-se para vender muitas das obras de arte de seu avô para financiar e ampliar seu próprio trabalho filantrópico —ajuda a um hospital pediátrico no Vietnã e projetos na França e Suíça que beneficiam idosos e adolescentes problemáticos.

    POR CONTA PRÓPRIA

    Sua abordagem pouco convencional às vendas de obras de arte está repercutindo nos mercados internacionais de arte, preocupando marchands e casas de leilão acostumados a exercer papéis fundamentais —e lucrativos— na venda de obras de arte renomadas.

    Em entrevista, Marina Picasso disse que vai vender as obras diretamente a compradores e que vai avaliar "uma a uma, com base na necessidade", quantas e quais das obras remanescentes das cerca de 10 mil que herdou de seu avô vai colocar à venda.

    Marina vem vendendo obras de seu avô regularmente há anos para sustentar-se e financiar suas obras beneficentes. Desde 2008, com a morte daquele que foi seu marchand durante anos, ela vem experimentando estratégias diversas no mercado; em 2013, vendeu duas pinturas importantes em leilão e expôs uma coleção de desenhos de nus na Sotheby's de Paris.

    Mas a decisão de vender os trabalhos por conta própria sugere um esforço mais assertivo de purgar-se de seu legado. Outros herdeiros de Picasso já venderam trabalhos dele, de modo ocasional, mas Marina Picasso é a única que parece estar acelerando a venda de objetos de arte, segundo Enrique Mallen, professor de história da arte na Sam Houston State University, no Texas, e criador do Online Picasso Project, que rastreia as obras.

    "Para mim, é melhor vender as obras e redistribuir o dinheiro a causas humanitárias", disse Marina, falando publicamente sobre sua estratégia pela primeira vez enquanto inspecionava um hospital em Marselha onde está financiando uma unidade psiquiátrica para adolescentes em crise. "É claro que tenho pinturas que posso usar para financiar esses projetos."

    A notícia de sua estratégia incomum está se alastrando por círculos seletos, transmitida de boca em boca e gerando rumores e desinformação, como o caso de uma reportagem recente em um tabloide dizendo que ela pretende vender a mansão de seu avô e sete obras de importância maior. Tudo isso vem gerando especulações de que ela possa inundar o mercado e provocar uma queda dos preços.

    "Em vez de haver um marchand que mostra as obras aos interessados, circula que há obras à venda, e pessoas estão perguntando a outras pessoas se teriam interesse nelas", comentou John Richardson, historiador e biógrafo de Picasso, em Nova York. "Diferentes pessoas já me disseram: 'Estamos de olho num negócio ótimo. Marina vai vender todas suas obras."

    Embora não seja incomum passar ao largo de intermediários e casas de leilão na venda de obras importantes, vendedores que cuidam das transações sozinhos podem estar em desvantagem no momento de estimar o valor dos trabalhos que possuem, de analisar os antecedentes dos compradores e a origem de seus recursos.

    Ao mesmo tempo, enquanto algumas casas de leilões elevam suas comissões, atuar sozinho pode acabar sendo uma tática inteligente para um vendedor interessado em ganhar o máximo possível.

    Marina Picasso, que recebeu cerca de 300 pinturas entre as 10 mil obras de Picasso que herdou —que incluem cerâmicas, desenhos, gravuras e esculturas, entre outras— disse que ainda não decidiu quantas obras vai vender e não tem planos de colocar a mansão no mercado. Mas sabe qual será a primeira obra que vai vender: "La Famille", de 1935, uma pintura de uma família cercada de uma paisagem árida.

    "Ela é simbólica, porque nasci numa família grande, mas era uma família que não era uma família", ela explicou. Quando Pablo Picasso morreu, em 1973, tinha criado cerca de 50 mil obras de arte e deixado um grupo confuso de quatro filhos, oito netos, esposas e musas, que mergulharam numa disputa prolongada sobre seu legado.

    Marina Picasso é filha de Paulo, filho de Picasso, e há muitos anos mantém distância do resto da família. Durante anos suas vendas de trabalhos de seu avô foram orientadas pelo marchand suíço Jan Krugier, curador de sua coleção, que vendeu muitas das obras melhores. Krugier morreu em 2008.

    Marina contou que ficou desapontada com outras alternativas de venda que escolheu, como um leilão realizado pela Sotheby's em 2013 de duas pinturas importantes, uma das quais foi "Femme Assise en Robe Grise".

    De acordo com a Sotheby's de Paris, as telas foram vendidas por US$6,8 milhões (R$ 19,2 mi), mas Marina disse que esperava mais que isso, porque os compradores sabiam que o dinheiro se destinava a financiar suas obras filantrópicas.

    O timing dela é bom: segundo a Artnet, de Nova York, no ano passado as vendas de trabalhos de Picasso em leilões perderam apenas para as de Andy Warhol, chegando a US$449 milhões (R$ 1,2 bi) em um mercado internacional de US$16,1 bilhões (R$ 45,5 bi).

    DRAMA FAMILIAR

    Segundo Marina, que tem cinco filhos, dentre os quais três adotados no Vietnã, as vendas vão ampliar seu trabalho filantrópico, mas também vão ajudá-la a se desfazer do peso de sua história familiar.

    Ela disse que não tem fotos com seu avô e que não tinha nenhum trabalho dele até receber sua herança. Ele costumava fazer flores de papel para ela, mas nunca lhe deixaram guardar esses mimos.

    Seu pai, Paulo, é filho de Picasso e sua primeira esposa, a bailarina russa Olga Khokhlova. Marina disse que ainda sofre quando se lembra de Paulo trabalhando como chofer de Picasso, entre outros papéis humildes, e lhe implorando por dinheiro.

    Sua mãe, Emilienne, separou-se de seu pai e lutou contra o alcoolismo. Dependia da ajuda ocasional de seu ex-marido para sustentar Marina e Pablito, o irmão mais velho desta. "Eu via meu pai muito raramente", contou Marina. "E não tive um avô."

    Seu distanciamento de seu avô e das pessoas que o cercavam se intensificou quando seu irmão foi barrado no funeral do artista, em 1973, pela segunda mulher de Picasso, Jacqueline Roque.

    Alguns dias depois disso, Pablito cometeu suicídio, bebendo água sanitária. Marina contou que seu enterro foi pago por contribuições de amigos. Na época, ela se sustentava trabalhando numa clínica para crianças autistas e doentes mentais.

    Picasso morreu aos 91 anos sem deixar testamento, desencadeando uma disputa encarniçada entre sua viúva, seus filhos e netos. Inesperadamente, Marina Picasso foi considerada uma das herdeiras e recebeu um quinto do patrimônio de seu avô, incluindo a mansão.

    "As pessoas dizem que eu deveria dar valor à herança que recebi, e eu dou", disse Marina, "mas é uma herança sem amor."

    Ela acabou aprendendo com seu passado. "Foi muito difícil carregar este sobrenome famoso e ao mesmo tempo ter uma vida de dificuldades financeiras. Acho que foi por isso que desenvolvi meu senso de humanidade e o desejo de ajudar outras pessoas."

    Olivier Widmaier Picasso, neto de Picasso e de sua amante Marie-Thérèse Walter, publicou sua própria biografia de Picasso e tem uma visão mais benévola do legado de seu avô. Ele se desentendeu com Marina quando tentou dar o nome de Picasso a carros da Citroen. Disse que compreende a amargura dela, mas a considera equivocada.

    "Vamos ser francos. Pablo Picasso não foi a causa disto tudo. A mãe de Marina teve a guarda exclusiva dela. Picasso não queria dar dinheiro à mãe dela porque temia que ela não o gastaria com as crianças. Então pagou os estudos delas diretamente."

    Olivier se surpreendeu quando soube como Marina pretende vender obras do avô dos dois. "Todos os herdeiros sempre trabalharam com grandes marchands, como Picasso fez em vida. Os marchands conhecem o mercado e os compradores. Eles evitam erros possíveis."

    Nos anos 1970, quando o espólio de Picasso foi dividido para pagar impostos, "La Famille" foi considerada uma das telas mais valiosas, porque seu estilo realista é tão incomum para o artista, disse Olivier.

    "A escala é enorme, e é um trabalho importante, evidentemente", comentou James Roundell, da Simon Dickinson Fine Art, em Londres. Para ele, a pintura vale milhões de dólares.

    "Hoje vivo no presente", ela disse. "O passado ficou no passado. Mas não vou esquecer, nunca. Respeito meu avô e sua estatura como artista. Fui sua neta e sua herdeira, mas nunca sua neta do coração."

    Tradução de CLARA ALLAIN

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