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    Crítica: Mordaz, Panahi usa comédia para falar de privações no Irã

    LUCAS NEVES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM BERLIM

    16/02/2015 03h10

    Antes de ser um mordaz filme político de um diretor perseguido pelo governo de seu país, o iraniano "Táxi", vencedor do Urso de Ouro em Berlim, é um belo filme, ponto.

    A distinção se impõe para colocar às claras a dúvida: teria o júri premiado Jafar Panahi mais pela sua biografia (ele foi condenado em 2010 por "propaganda antirregime") do que pelos méritos da obra?

    A resposta é não. Em seu terceiro trabalho clandestino (o diretor foi proibido de filmar no Irã ou de deixar o país por 20 anos), Panahi escapa ao tom panfletário e se esquiva da vitimização de si mesmo.

    Berinale 2015/Efe
    Cena de 'Taxi', filme de Jafar Panahi
    Cena de 'Taxi', filme de Jafar Panahi

    Prefere o comentário social sutil, muitas vezes cômico.

    "Táxi" se constrói como uma sucessão de esquetes em que os relatos e as agruras dos passageiros do carro do título, captados por uma microcâmera acoplada ao para-brisa, formam um caleidoscópio da sociedade iraniana, sob os olhares de um motorista afável, porém lacônico -o próprio cineasta.

    No estúdio móvel, que acolhe passageiros com destinos diferentes, há lugar para o embate entre uma professora e um batedor de carteira sobre o valor pedagógico de penas capitais, para a lábia de um vendedor de DVDs piratas (antídoto à censura oficial que beneficia Panahi) e para a mulher que irrompe pela porta aos prantos com o marido ensanguentado nos braços.

    Esse último quadro ilustra o trabalho de ourives do diretor. O desassossego dá lugar ao humor negro quando o acidentado insiste para que o camelô registre no celular um "testamento audiovisual" em que ele deixa os bens para a mulher (contrariando a lei local).

    Mais tarde, desde o hospital, essa mulher importuna o "chofer" por telefone para ter acesso ao arquivo. Crítica de costumes, sim, mas engenhosa e, ao fim, engraçadíssima.

    Em outra instância de metacinema, a sobrinha pré-adolescente de Panahi pega carona no táxi para rodar um trabalho escolar, mas se atrapalha com a cartilha da professora. Não se pode mencionar política ou economia; filmar cenas de "realismo sórdido" está igualmente banido.

    Entende-se que a perplexidade diante das privações e arbitrariedades é de Panahi mas também da mulher que corre o risco de perder tudo com a morte do marido, da advogada impedida de atender presos políticos, do amigo que hesita em registrar B.O por medo de ajudar a mandar assaltantes à forca...

    É essa recusa do diretor ao ensimesmamento que faz a grandeza desse "Táxi", SUV insolente em que sempre cabe mais um passageiro da agonia.

    TAXI
    direção Jafar Panahi
    produção Irã, 2015
    quando sem previsão de estreia
    avaliação ótimo

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