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    Crítica: Narrativa sóbria e madura de Arthur Miller exala perfeição

    RODRIGO GURGEL
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    21/02/2015 02h10

    Os contos de Arthur Miller, reunidos em "Eu Não Preciso Mais de Você", não podem ser equiparados à sua dramaturgia, mas se impõem como exemplo de ficção madura e persuasiva.

    Bastaria, para elogiar Miller (1915-2005), a consciência, exposta no prefácio, do que os gêneros literários exigem, o dever de "seduzir, ameaçar ou domar" o público.

    "Mais perto ou mais longe do terrível calor do centro do palco", o dramaturgo americano também sabe que, além de exigir o "tom adequado", nenhum gênero sozinho "é capaz de fazer tudo direito".

    Bettmann/Reuters
    O dramaturgo americano Arthur Miller
    O dramaturgo americano Arthur Miller

    Certa mescla de sobriedade e delicadeza configura grande parte das narrativas, como "Monte de Sant'Angelo" –em que a busca pelas raízes familiares contagia um amigo insensível–, "Por Favor, Não Mate Nada" –singelo hino de louvor à vida, destituído dos nossos conhecidos e maçantes discursos politicamente corretos– e "Moça do Lar, Uma Vida", na qual insegurança e dúvidas perturbam a protagonista sem vencê-la, sem condená-la ao tédio ou à alienação.

    HEROÍSMO ANÔNIMO

    O herói clássico ressurge em "A Noite do Serralheiro". Tony Calabrese é o homem simples, filho de imigrantes marcado por diversas fraturas morais, vítima, na juventude, da manipulação familiar.

    A chance de redenção chega em uma noite invernal –mais uma em que ele finge trabalhar. Calabrese afasta, ainda que de forma temporária, os planos mesquinhos, a preguiça e os ressentimentos para se debruçar sobre a escuridão, vencer o medo e os limites físicos e cumprir seu dever.

    Poder de descrição, técnica para intercalar planos narrativos e aguda psicologia dão vida a esse personagem complexo e cativante.

    Eu Não Preciso Mais de Você
    Arthur Miller
    livro
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    O mesmo heroísmo anônimo marca "A Profecia", em que a protagonista, reconciliada consigo mesma, chega ao final livre para se sentir "enlevada pelo coração daqueles cujas portas resistem aos ventos do mundo".

    A narrativa que dá título ao livro lembra "Pelos Olhos de Maisie", de Henry James, mas com a concentração, a tensão que só um gênero breve permite. A história do garoto problemático, febril e fantasioso termina numa doce epifania –e reafirma a metáfora de Cortázar ao definir o conto: "um tremor de água dentro de um cristal, uma fugacidade numa permanência".

    Há também um Miller capaz de não se submeter ao senso comum da esquerda norte-americana que apoiou Stálin –em "Moça do Lar, Uma Vida"– ou se empanturrou de freudismo e utopia apenas para apaziguar sentimentos de culpa – em "O Engenho de Terebintina". Esse olhar crítico, deliciosamente irônico, aprimora o que transpira perfeição.

    EU NÃO PRECISO MAIS DE VOCÊ
    AUTOR Arthur Miller
    TRADUÇÃO José Rubens Siqueira
    EDITORA Companhia das Letras
    QUANTO R$ 49,90 (456 págs.)
    AVALIAÇÃO ótimo

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