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    Crítica: Encenação potencializa pessimismo de Kafka e mostra artistas frágeis

    GUSTAVO FIORATTI
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    27/02/2015 02h46

    O conto "Josefina, a Cantora ou o Povo dos Ratos", do escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924), constrói-se no discurso de um narrador sobre a relação entre uma artista supostamente talentosa e o povo que a elegeu como tal.

    Em livre adaptação para o palco, Elzemann Neves circunscreve a problemática desta relação em uma reelaboração mais amarga, localizando a história de Josefina em um momento específico, em que a artista perdeu prestígio.

    Na peça "Josefina Canta", dois personagens fantasmagóricos (Germano Melo e Bia Toledo) dissecam a imagem de Josefina (Inês Aranha), deslocando-se em seus papéis. Ora usam o tom de servos, ora são carrascos, ora historiadores.

    Lenise Pinheiro/Folhapress
    Atores Bia Toledo (esq), Germano Melo (centro) e Inês Aranha
    Atores Bia Toledo (esq), Germano Melo (centro) e Inês Aranha

    No cenário, quadros nas paredes da pequena sala do Teatro Augusta sugerem que Josefina se tornou, com o passar do tempo, uma peça de museu.

    Acentua-se nas diversas trajetórias que a peça propõe traçar, entre literatura e dramaturgia –ou mesmo entre o início do século 20 e o do século 21–, a intenção de forjar um temperamento cínico.

    Potencializado pela encenação, o pessimismo de Kafka revela a fragilidade do papel do artista em uma luta inglória para existir.

    A GRANDE BELEZA

    O filme "A Grande Beleza", de Paolo Sorrentino, em 2013, fez algo similar com seu protagonista, um crítico, sentenciando ao final de um passeio pela história da arte italiana: "É tudo questão de truque".

    E agora "Birdman", longa vencedor do Oscar, volta à questão, mas sob a ótica de um artista no teatro cujo conflito íntimo transborda os limites da aceitação pública.

    Sentir que existimos talvez não seja uma questão dependente apenas do amor, da tolerância, dos aplausos, da aceitação (Kafka fala até de paternalismo) de uma plateia, quão vasta seja ela.

    No original, o escritor não faz enunciado explícito como o de "A Grande Beleza" e busca se distanciar da perspectiva do artista, que "Birdman" recupera. Criou seu conto durante a ascensão do nazismo, o que ainda por cima faz vibrar uma possível comparação entre artistas e líderes políticos com seus mecanismos.

    Simbolicamente aberto, seu texto expõe o público e o artista como dois organismos que se encontram e se distanciam segundo graus de cumplicidade. Os ratos presente no título (ou o público) exercem um papel só, um corpo.

    Daí a ideia de que a arte não se comprime somente no voz do autor nem permanece unicamente fadada à "eleição" de uma plateia. Estende-se por todo este percurso como um sistema autônomo, capaz de atravessar gerações.

    Se o cinismo corrói essa relação, a peça de Neves se apropria deste mal tanto quanto se volta contra ele. É uma espiral que desde Kafka não encontra fim.

    JOSEFINA CANTA
    QUANDO sex., às 21h30, sáb., às 21h, dom., às 19h; até 29/3
    ONDE Teatro Augusta, r. Augusta, 943, tel. (11) 3151-4141
    QUANTO R$ 30
    CLASSIFICAÇÃO 14 anos
    AVALIAÇÃO muito bom

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