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    Spock nunca permitiu que Leonard Nimoy atingisse velocidade de escape

    ALESSANDRA STANLEY
    DO "THE NEW YORK TIMES"

    27/02/2015 16h08

    O título da autobiografia de Leonard Nimoy era "I Am Not Spock", e isso foi tamanha ofensa para alguns fãs que ele publicou um segundo livro intitulado "I Am Spock".

    O ator que conquistou lugar permanente no altar da cultura pop ao interpretar o sr. Spock em "Jornada nas Estrelas" era quase igualmente famoso por seu desejo de ser recordado por outras coisas.
    O que é altamente ilógico, é claro.

    É difícil pensar em outro astro identificado de maneira tão próxima e afetuosa com um único papel. Até mesmo George Reeves, o primeiro Super-Homem da televisão, havia antes interpretado um dos gêmeos Tarleton em "...E o Vento Levou".

    É ainda mais difícil pensar em um personagem de TV que tenha incorporado de maneira tão plena um determinado tipo de personalidade. Da mesma forma que mr. Scrooge, de Dickens, se tornou sinônimo de sovinice e que Peter Pan se tornou uma síndrome, Spock passou a personificar a racionalidade fria.

    Os romances e filmes de mistério oferecem Sherlock Holmes como exemplo último do herói cerebral e distante. Até "Jornada nas Estrelas", a televisão não dispunha de um personagem tão distintiva -e irresistivelmente - controlado, cerebral e minucioso. (Mr. Peabody, no desenho de Rocky e Bullwinkle, ficava perto, mas ele era um beagle, e bastante afetuoso, ao seu modo ranzinza.)

    O "Jornada nas Estrelas" original, criado por Gene Roddenberry, estreou em 1966 e só ficou três temporadas em cartaz, mas na realidade jamais saiu de cena: continua vivo em reprises, refilmagens, adaptações cinematográficas, quadros de humor, fantasias de Dia das Bruxas, convenções, brinquedos, histórias escritas por fãs e paródias infinitamente cafonas disponíveis no YouTube.

    A geração baby boom (nascidos entre 1946 e 1964, no pós-guerra) cresceu sob os cuidados dos dois Spocks - Mr. Spock e o doutor Spock, mas hoje o personagem de "Jornada nas Estrelas" é muito mais relevante que o pediatra Benjamin Spock.

    Mesmo pessoas que nunca assistiram a qualquer das séries ou filmes "Jornada nas Estrelas" conhecem as palavras "vulcano" e "Spock", e as empregam. Maureen Dowd, colunista do "New York Times", descreveu a frieza distanciada do presidente Barack Obama como "coisa de vulcano".

    Obama posou para fotos no Gabinete Oval com Nichelle Nicholls, que interpretava a tenente Uhura, fazendo a saudação vulcana com os dedos separados.

    "Jornada nas Estrelas" tem muitos personagens queridos, mas Spock se destaca como protótipo: uma figura que parecia nova mas tinha raízes clássicas.

    Spock em geral era invulnerável ao amor, mas sua mãe (interpretada por Jane Wyatt) era humana, o que significava que ele nem sempre era capaz de reprimir seus sentimentos.

    E isso o tornou o mais inacessível e romântico herói que se poderia imaginar - Hipólito, o guerreiro casto e desdenhoso de Eurípides, ou um Mr. Rochester [personagem do romance "Jane Eyre", de Charlotte Brontë] para a era da ficção científica. Naturalmente, alguns dos episódios mais memoráveis da série giram em torno da vida amorosa extraterrestre do Sr. Spock.

    Em "Amok Time", Spock subitamente começa a se comportar erraticamente e confessa que está no cio, por assim dizer: em sua temporada de acasalamento, os vulcanos retornam à sua luxúria primeva. (Ele sobreviveu.)

    No episódio "This Side of Paradise", Spock é infectado por misteriosos esporos de uma planta durante uma missão, e o efeito é um súbito acesso de felicidade e romantismo.

    Mas seu elo mais forte era com o capitão James T. Kirk, interpretado por William Shatner, e a amizade entre eles ainda ecoa.
    Shatner deixou a série para trás; encontrou até um novo parceiro na telinha, James Spader, no seriado "Boston Legal". Nimoy persistiu na carreira por algum tempo, por exemplo interpretando Paris em "Missão Impossível", e fez muito teatro, mas enfrentou dificuldades para obter papéis que eclipsassem o impacto de Spock.

    Voltou-se à filantropia e à arte, publicando discos de poemas e diversos livros de poesia e fotografia, entre os quais uma coleção de nus de mulheres com excesso de peso, intitulado "The Full Body Project".

    Um pouco como Spock, exposto ao conflito entre seus dois lados, Nimoy se viu dividido entre sua verdadeira pessoa e sua identidade em "Jornada nas Estrelas", que os fãs desejavam tão apaixonadamente vê-lo prolongar.

    Emprestou sua voz em 2012 a um boneco de Spock no seriado "The Big Bang Theory", em um episódio no qual Sheldon (Jim Parsons) sonha que seu Spock de brinquedo é real. Mesmo essa breve presença alude à ambivalência de Nimoy quanto ao seu estrelato. Sheldon fala com emoção sobre a sensação de estar de verdade na ponte de comando da espaçonave Enterprise. O boneco Spock responde: "Pode acreditar: depois de algum tempo, isso cansa".

    Os fãs nunca se cansaram, porém. Nos anos finais de sua vida, Nimoy passou a usar o Twitter, e encerrava suas mensagens com uma abreviação que alude à saudação vulcana: "Live long and prosper".
    LLAP parece muito melhor do que RIP.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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