Desde que inventou o cubismo até traduzir os horrores da guerra em geometrias alucinantes, Pablo Picasso se firmou como um mestre do escândalo visual, criando e revendo vanguardas e sobrevivendo à mudança dos gostos.
É como uma espécie de gênio mutante, capaz de redefinir as regras plásticas a cada fase de sua obra, que o artista espanhol surge numa das maiores mostras deste ano.
No fim de março, Picasso, nascido em 1881 e morto em 1973, será revisto no Centro Cultural Banco do Brasil paulistano como um dos homens que moldaram a arte do século 20. Dos primórdios cubistas à fase surrealista, a mostra repassa cinco décadas de sua vida em quase cem obras do museu Reina Sofía, em Madri.
"Picasso é Picasso por seu poder de sobrevivência", diz Eugenio Carmona, estudioso do artista que organiza a mostra. "Existe o Picasso simbolista, o que inventou o cubismo e depois as colagens, isso tudo até negar a sua obra e virar o farol dos surrealistas."
Ou seja, Picasso buscava o que historiadores da arte acabaram definindo como o "grau zero" da pintura, as leis que regem a representação.
Nessa busca, o artista andaluz, de Málaga, balneário no sul da Espanha, destruiu e reinventou as regras do jogo em pinturas que se tornariam terremotos plásticos.
Uma delas é o retrato de Fernande Olivier, amante de Picasso. No quadro de 1910, que estará em São Paulo, o rosto da mulher se transforma em turbilhão geométrico, de losangos e triângulos cinzentos, lembrando a angulosidade de máscaras africanas que pautaram a tentativa de representar vários pontos de vista num só plano, a base do cubismo.
"Essa obra é ao mesmo tempo abstrata e figurativa", diz Carmona. "Ele cria efeitos cromáticos usando pouca cor, efeitos luminosos sem focos de luz e a sensação de profundidade sem nada em perspectiva. É sua investigação dos aspectos básicos da pintura."
Desse que foi um de seus primeiros experimentos cubistas à imagem da cabeça de cavalo agonizante, que fez em preparação para "Guernica", sua obra-prima de 1937, Picasso oscilou entre estilizações mais agudas e suaves de seus personagens.
"Queremos mostrar toda a evolução dos seres que ele criou, do cavalo ao resto de 'Guernica'. Ele foi um motor das vanguardas", diz Rosario Peiró, diretora do acervo do Reina Sofía. "É um artista interminável, que diz uma coisa nova em cada obra, ao mesmo tempo genial e global."
TOUROS E CAVALOS
O cavalo está no centro de um dos quadros mais emblemáticos do século 20, inspirado pelo horror do bombardeio aéreo à cidade espanhola de Guernica em 26 de abril de 1937, por tropas comandadas por Adolf Hitler em apoio ao ditador Francisco Franco.
É um dos poucos elementos de sua obra que Picasso fez questão de explicar. Seu bicho arfante, com a língua em forma de punhal, representava a dor do povo espanhol massacrado pela guerra.
Em contraponto ao cavalo, Picasso encarnou na figura do touro, do qual uma série de estudos estará na mostra paulistana, a ideia de trevas associada ao conflito.
"Picasso funciona por polaridades", diz Carmona. "O touro é um animal bonito capaz de provocar a morte, de estripar um bicho indefeso como um cavalo. Essa dualidade também representava para ele a dificuldade da criação artística, daí a potência dessa imagem ao longo de sua obra."
No fundo, isso também tem a ver com noção de modernidade do artista. Picasso não acreditava em rupturas totais. Liderava revoluções estéticas para desfazer mais tarde seus próprios avanços, num processo dialético que entendia ser moderno como um "estado de reconciliação" ou "tradução do passado em inovação", nas palavras do curador.
Foi com "Guernica", aliás, que Picasso atingiu fama global. Sua tela, exposta pela primeira vez em Paris em 1937, depois viajou o mundo, passando por Nova York e São Paulo, e cimentou o culto à personalidade do artista.
Dora Maar, sétima mulher de Picasso, estava casada com ele na época em que pintou "Guernica" e é alvo de um dos retratos da mostra. Seu olhar arregalado e o nariz desproporcional traduzem a intranquilidade do momento e desafiam o espectador.
Da geometria de Fernande à tensão de Dora, Picasso parece ter se retratado no rosto de suas mulheres, tão plurais quanto suas vanguardas.
PABLO PICASSO
QUANDO abre em 25/3, às 19h; de qua. a seg., das 9h às 21h; até 8/6
ONDE CCBB, r. Álvares Penteado, 112, tel. (11) 3113-3651
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