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    Repórter relata participação em aula de performance de Marina Abramovic

    SILAS MARTÍ
    DE SÃO PAULO

    11/03/2015 02h05

    Depois de esperar na fila e deixar tudo num armário na entrada, somos levados por rapazes e garotas de macacão cinza a uma sala com quatro monitores de TV. Nas telas, logo surge o rosto pálido, de expressão melancólica, de Marina Abramovic.

    Estamos no "Método Abramovic", coração da mostra da artista sérvia agora no Sesc Pompeia e versão reduzida de suas sessões de treinamento para performers –ao norte de Nova York, em bosques ao redor de uma casa em forma de estrela, seus discípulos passam uma semana com ela, sem comer nem falar, para aprender a "estar presente".

    Mas em São Paulo, ao contrário do que fez há cinco anos em Nova York, quando se sentou à mesa com cada um dos visitantes de sua mostra no MoMA, Marina Abramovic não está presente.

    Eduardo Anizelli/Folhapress
    Instalação com cadeiras usadas por Marina Abramovic em sua performance 'A Artista Está Presente', no MoMA, em Nova York
    Cadeiras usadas por Marina Abramovic em sua performance 'A Artista Está Presente', no MoMA, em NY

    Imaginei que seus milhares de fãs, disputando uma vaga para participar do tal "Método", também achassem que ficariam cara a cara com a artista plástica viva mais famosa no mundo hoje.

    Então vem a decepção, análoga à expectativa de ver a Xuxa e ter de se contentar com as paquitas. Na tela, ela dá uma breve introdução e logo surge outra assistente para demonstrar como se faz o "Método", dando instruções que vão de enfiar os dedos no nariz para abrir as narinas a dar soquinhos no peito para acordar pulmões e coração.

    Seu tom protocolar e monocórdico lembra uma aeromoça indicando as saídas de emergência num avião, sem contar que os movimentos indicados, como chacoalhar todo o corpo e balançar a cabeça, têm estranha semelhança com coreografias de programas infantis.

    Eduardo Anizelli/Folhapress
    A artista Marina Abramovic durante entrevista coletiva no Sesc Pompeia, em São Paulo
    A artista Marina Abramovic durante entrevista coletiva no Sesc Pompeia, em São Paulo

    É claro que, tendo feito uma sessão para jornalistas e críticos, preciso dar um desconto. Não dá para ficar à vontade entre colegas de trabalho, todos julgando suas habilidades motoras nessa bizarríssima pista de dança.

    Mas, depois do aquecimento, vem o "Método" para valer. Vestimos fones de ouvido que bloqueiam todo o som ao redor e sentamos, deitamos e ficamos de pé –cada um desses movimentos por infinitos 30 minutos– em camas, cadeiras e plataformas de madeira decoradas com cristais.

    Sentei num banco de frente para uma parede. Sem contar a menina atrás de mim, as costas apoiadas nas minhas, veio a sensação de estar isolado de tudo. Comecei a estudar cada detalhe dos tijolos à minha frente, pensei por um instante em Lina Bo Bardi, arquiteta do Sesc Pompeia.

    De repente, notei um estranho fulgor ou brilho nos intervalos entre cada um daqueles tijolinhos à vista. Aquilo é mesmo bonito. Achei então que tivesse alcançado a transcendência do "Método".

    Noutro exercício, em que caminhamos em câmera lenta, levando meia hora para andar 20 metros, pude sentir cada músculo do corpo. Sem prática em fazer coisas em velocidade de lesma, deixei que o piscar de uma luz vermelha ao longe, bem devagar, orientasse meus passos, que pareciam entrar, por fim, no ritmo dos assistentes de macacão.

    O REI ESTÁ NU

    Ninguém fala uma palavra. E, mesmo se falasse, ninguém ouviria. Mais perto do fim, bate aquela incômoda sensação de que o rei está nu. Tenho receio de dizer que achei tudo uma bobagem. Mas será? Talvez não tenha sido uma bobagem. Minha cabeça, mesmo mergulhada no silêncio contemplativo do nada, está a mil.

    Levei essas considerações ao divã –de verdade. Minha analista disse que a experiência que tive do "Método" não poderia ter sido das mais legítimas pelo medo de me expor diante dos outros jornalistas.

    Mas não deixo de pensar nisso tudo como um exercício deprimente de fé na arte diante da total ausência de fé em qualquer outra coisa.

    Num mundo de romarias de feira em feira e bienal em bienal, em que olhamos para as obras, mesmo as mais medíocres do mundo, e guardamos um silêncio respeitoso, como se diante de um altar, o "Método Abramovic" surge como uma provocação ou triste diagnóstico de que às vezes o nada é mesmo o nada. Ou de que o rei está mesmo nu.

    Na saída do treino, um performer convidado pela artista fazia sua ação. Estava nu dentro de uma bolha de plástico.

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