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    Crítica: Apesar de futurista, charme de 'Neuromancer' é seu ar retrô

    REINALDO JOSÉ LOPES
    COLUNISTA DA FOLHA

    14/03/2015 02h16

    William Gibson costuma ironizar a própria imprecisão como futurologista. Segundo ele, "Neuromancer", seu primeiro e mais importante romance de ficção científica, provavelmente deixa os adolescentes de hoje meio malucos, tentando entender por que diabos os "caubóis do ciberespaço" da trama não podem usar celulares e precisam se contentar com orelhões.

    Se Gibson errou ao não prever a ascensão dos smartphones, a nova e caprichada edição de "Neuromancer" que chega ao país deixa claro que acertou no que importa.

    Publicada originalmente em 1984, a trama condensa boa parte do cenário predominante neste começo de século 21, da internet à obsessão por cirurgias plásticas, do poderio supranacional das empresas de tecnologia à inoperância dos governos.

    Só existem anti-heróis –ou coisa pior– no universo de Case, um hacker americano autoexilado no Japão que é contratado (ou chantageado, dependendo da perspectiva) para destruir as amarras digitais que controlam uma misteriosa forma de inteligência artificial. Case navega pela protointernet imaginada por Gibson plugando diretamente seu cérebro nos ambientes virtuais.

    Andrew Burton/Bloomberg News
    O autor William Gibson em registro de 2007, em Nova York
    O autor William Gibson em registro de 2007, em Nova York

    Apesar de tanto futurismo, um dos charmes de "Neuromancer" é a atmosfera deliciosamente retrô –a exemplo dos orelhões, o romance se demora na descrição de prédios, artefatos e roupas cuja presença faria mais sentido num filme dos anos 1930.

    Como um eco a essa sensação, a nova versão do livro tem uma bonita encadernação artesanal, costurada.

    Inclui ainda três contos clássicos de Gibson, publicados pouco antes de "Neuromancer": "Johnny Mnemonic" (que traz a primeira aparição da "samurai das ruas", Molly, amante e guarda-costas de Case), "Hotel New Rose" e "Queimando Cromo".

    Mas a joia entre os "extras" do livro é uma longa entrevista concedida pelo escritor em 1986, na qual revela detalhes da gênese de seu romance de estreia –meio desesperado para achar um fio condutor que alinhavasse os elementos da história, Gibson resolveu apelar para um lugar-comum das narrativas policiais: o gângster que caiu em desgraça e quer ajustar as contas com um grande golpe.

    Neuromancer
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    Apesar de sua aparente clarividência quando o assunto é imaginar os impactos de novas tecnologias, o romancista confessa não entender o que se passa nas entranhas de um computador.

    "Quando me ouço tentar explicar essas coisas, imediatamente fica claro que não tenho ideia de como computadores realmente funcionam", admite Gibson na entrevista. "Só depois que o livro saiu eu conheci pessoas que realmente sabiam o que era um programa de vírus. Minha ignorância havia permitido que eu os romanceasse."

    Parte das profecias do autor, é claro, ainda estão para se realizar –por mais que uma proporção crescente dos seres humanos esteja conectada ao ciberespaço (no momento, cerca de 3 bilhões de pessoas e contando), ninguém consegue ainda plugar seu cérebro diretamente na web.

    Mas, se um dia chegarmos lá, Gibson vai rir por último mais uma vez.

    NEUROMANCER
    AUTOR William Gibson
    TRADUÇÃO Fábio Fernandes
    EDITORA Aleph
    QUANTO R$ 79 (416 págs.)
    AVALIAÇÃO ótimo

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