Num dos pátios do centro de Charjah está uma réplica em tamanho real e coberta de andaimes do sovaco da estátua da Liberdade, também feito de chapas de cobre moldadas com a técnica usada no monumento de Nova York.
Essa instalação do artista vietnamita Danh Vo, que abre a Bienal de Charjah, em cartaz até maio no emirado vizinho a Dubai, sintetiza com seu olhar metonímico essa que é a maior mostra de arte contemporânea do Oriente Médio.
Uma sala perto dali reforça essa visão oblíqua do mundo com três pinturas da britânica Lynette Yiadom-Boakye. Elas retratam uma mulher, em enquadramentos fechados e abertos, segurando binóculos na altura dos olhos, como se visse só aquele pedaço da estátua de Vo.
Alfredo Rubio/Divulgação | ||
Instalação 'We the People', de Danh Vo, na Bienal de Charjah |
Num terreno pedregoso para discussões políticas de verdade, as obras desta edição da mostra, organizada pela norte-americana Eungie Joo, ex-diretora artística do Instituto Inhotim, parecem só tangenciar a realidade. Provocam, mas mantêm a distância, com certa autocensura incomum nas artes visuais.
Há quatro anos, uma obra foi removida da décima edição da mostra por ser considerada ofensiva ao islã, episódio que levou à demissão de seu diretor artístico, Jack Persekian. Desde então, a Bienal de Charjah tem se tornado mais etérea e rarefeita.
Nas palavras de Joo, sua edição da mostra fala do "passado, do presente e do possível", como se o futuro ali prescindisse da imaginação e tivesse de se moldar à rigidez dos parâmetros locais e seus códigos religiosos e políticos.
"Este é o mundo árabe", resume Persekian, o diretor expulso da Bienal, numa conversa em Dubai. "Liberdade de expressão não é melhor aqui. Se você falar em sexo, política e religião vai ser escaldado. Mas não devemos pensar nisso por um prisma ocidental. Existe outra economia da arte aqui, com outros valores."
De fato, Charjah e Dubai, com a feira Art Dubai, encerrada na semana passada, fizeram dos Emirados Árabes Unidos um dos pontos nevrálgicos do mundo da arte.
Tanto a feira quanto a bienal, como toda a economia do país, são financiadas pelos xeques locais, que desde os anos 1970 lideram uma operação alquímica –transformar petrodólares em plataforma de turismo e cultura.
MUNDOS POSSÍVEIS
Hoor Al Qasimi, filha do xeque de Charjah e atual diretora da Bienal, entende que não está num território neutro. Educada em Londres e figura de peso na direção de instituições como o MoMA, em Nova York, ela tenta estabelecer em seu país uma versão possível do mundo da arte.
"Não podemos começar nenhum debate ofendendo as pessoas", diz a princesa. "A cada Bienal, temos forçado um pouco mais os limites, mas sem alienar o público local. É para eles que estamos ali, não para o público internacional das artes plásticas."
Esse mesmo raciocínio parece ancorar a seleção de obras e galerias da Art Dubai. Ali prevalecem peças com pegada decorativa, cheias de brilho e elementos caligráficos, em detrimento de coisas que falem de sexo ou política.
Mesmo a obra mais poderosa da Bienal de Charjah, uma instalação do libanês Rayyane Tabet que ocupa uma ala inteira de um museu da cidade, evita a polêmica, pelo menos na superfície. São aros metálicos em sucessão vertiginosa que formam um tubo vazado –alusão a um antigo duto de petróleo que seria construído entre a Arábia Saudita e o Líbano na década de 1940.
Da falência do projeto resulta um monumento à ausência que toca, só em chave subterrânea, nas feridas que o desenho e o redesenho das fronteiras ali deixaram abertas.
Outras obras, como os desenhos do céu de Charjah do americano Byron Kim e o pátio cheio de areia da brasileira Cinthia Marcelle, abraçam a pureza formalista e tomam distância de pontos espinhosos.
Jac Leirner, outra brasileira na mostra, criou uma sala de instrumentos para medir o tempo. Nas paredes estão jogos de Sudoku resolvidos por ela e conjuntos de réguas de várias cores e tamanhos. É como se declarasse que nesta parte do mundo há mais do que dois pesos e duas medidas.