• Ilustrada

    Saturday, 04-May-2024 19:48:05 -03

    Análise: Poeta português Herberto Helder foi autor de obra antológica

    JORGE HENRIQUE BASTOS
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    25/03/2015 02h25

    O que diria o leitor menos afeito a poéticas estranhas, ao ler versos como estes: "A menstruação quando na cidade passava/ O ar. As raparigas respirando,/ Comendo figos –e a menstruação quando na cidade/ corria o tempo pelo ar./ Eram cravos na neve. As raparigas/ riam, gritavam –e as figueiras soprando de dentro"?

    Porventura, ficaria surpreendido com a sucessão de imagens criadas pelo poeta implodindo no interior da realidade.

    Este poeta chamava-se Herberto Helder, era português madeirense, nascido em 1930, numa ilha algures no Atlântico, e conhecida no Brasil por causa do vinho que lá se produz, o Madeira.

    Ele morreu na última segunda (23), aos 84 anos, de causa ainda não revelada.

    Sua obra surgiu para revolucionar a lírica portuguesa do século 20. Ao estrear na literatura com o livro "Amor em Visita" (1958), fincou suas bases, a partir daí, sobre um terreno surrealista, com uma alta voltagem experimental, demonstrando que o autor vivia sob tensão criativa.

    E aí apareceram obras que conquistaram legiões de admiradores e leitores, como "A Colher na Boca" (1961), "Electronicolirica" (1964), "Antropofagias" (1971), "Photomaton & Vox" (1979), "Os Selos" (1989) e "Do Mundo" (1994).

    Divulgação
    O poeta português Herberto Helder, morto aos 84 anos
    O poeta português Herberto Helder, morto aos 84 anos

    LUCIDEZ

    Continuou a publicar mesmo depois dos 80 anos, demonstrando que sua lucidez se mantinha aguda e com uma expressividade poética jovialíssima em obras como "Servidões" (2013) e "A Morte sem Mestre" (2014).

    Ao mesmo tempo em que granjeava notoriedade, um problema começou a se desvelar. Sua radicalidade em não surgir na mídia, a defesa feroz da sua privacidade, o desprezo e a recusa pelos prêmios literários revelaram um autor que não se vergava ao poder dos holofotes.

    Apesar desta atitude, Helder só aumentou a curiosidade em torno de seu nome e de sua obra.

    Na juventude, estudou na Universidade de Coimbra, mas não acabou o curso. Na década de 1960, viajou para França, Holanda e Bélgica, lugares que se tornaram cenário dos contos de "Os Passos em Volta" (1963).

    Teve as mais diversas profissões –publicitário, jornalista, meteorologista, tradutor. Mas na verdade, ele foi apenas poeta.

    TRIBOS BRASILEIRAS

    Sua relação com o Brasil era próxima –parentes em Santa Catarina. É curioso notar em sua obra o interesse que mantinha pelos textos cosmogônicos de tribos indígenas brasileiras, ou mesmo a inserção que fez em alguns poemas de temáticas e referências brasileiras. Um bom tema para os estudiosos.

    Apesar disso, há apenas três antologias do autor lançadas aqui: "O Corpo O Luxo A Obra" (Iluminuras), "Os Passos em Volta" (Azougue Editorial) e "Ou o Poema Contínuo" (Girafa).

    É óbvio que sua obra não detém a projeção maciça de um Fernando Pessoa, mas é sem dúvida referência antológica e obrigatória.

    Para além da sua personalidade refratária a qualquer tipo de massificação, Herberto Helder ergueu uma catedral onde se cruzam a densidade mágica da poesia e do homem e os meandros tecnológicos de um mundo em mutação.

    Seu anonimato provocatório, num mundo de exposição massiva, só deixa mais evidente uma obra sem igual.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024