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    Para Manoel de Oliveira a 'civilização mata'; relembre entrevista

    DE SÃO PAULO

    02/04/2015 11h15

    O cineasta Manoel de Oliveira, que morreu nesta quinta-feira (2), aos 106 anos, acreditava que a civilização atual está depravada, perdeu ética e força, em "um movimento em direção à morte que ninguém para".

    Em entrevista ao jornalista Thiago Stivaletti para a Folha em 2005, o português foi categórico ao afirmar que a civilização mata.

    Na época, Manoel de Oliveira havia ganhado um livro sobre sua obra, editado pela Cosacnaify, e uma retrospectiva completa na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, com seus quase 40 filmes.

    Confira a entrevista na íntegra:

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    É difícil entrevistar Manoel de Oliveira depois que o organizador da Mostra Leon Cakoff passou cerca de 14 horas conversando com o diretor para o livro que está sendo lançado no festival pela editora Cosacnaify. Mas fascina a disposição com que o cineasta português de 96 anos, o mais velho em atividade hoje no mundo, discorre sobre cinema, vida, história e fé.

    O mundo moderno não lhe mete medo: aprende a lidar com as novas tecnologias ao mesmo tempo em que as critica. Revisou no computador as provas do livro e demonstrou conhecer a internet –viu na rede a foto que ilustraria a capa antes mesmo que os editores a mostrassem. Num curta inédito rodado no ano passado em São Paulo para um projeto embrionário da Mostra, analisa como o celular prejudica mais do que ajuda a comunicação humana. Leia abaixo os principais tópicos da entrevista com o cineasta.

    O CINEMA EM 1931 (ANO DE SEU PRIMEIRO FILME) - A sétima arte ainda era uma descoberta. O espectador era muito curioso, atento, buscava a compreensão, gostava de ter dúvidas e discutir com os outros nos intervalos entre um filme e outro. O cinema ainda contrariava a vontade do realizador, porque ainda se buscava uma especificidade para esse novo suporte. Como era mudo, não podia se aproveitar do poder da palavra e buscou criar um mundo onírico. A palavra fez com que o cinema se tornasse uma síntese de todas as artes: literatura, música, teatro, fotografia. Porque tudo remete à imagem: a palavra remete a uma imagem, a música remete a uma imagem.

    "ANIKI-BÓBÓ", FILME DE 1942 CONSIDERADO UM PRECURSOR DO NEO-REALISMO - Ao fazê-lo, não tinha consciência de que estava criando uma nova estética. Hoje, vejo que a única diferença entre o meu filme e aqueles do neo-realismo é o projeto político destes últimos. Em "Aniki-Bóbó" há apenas preocupações humanas. E um sentido transcendente que eu buscava no cristianismo.

    "UM FILME FALADO" E OS MALES DA CIVILIZAÇÃO - Apesar do domínio do império americano hoje, ainda vivemos numa civilização ocidental de origem mediterrânea. Mas essa civilização está depravada, perdeu ética e força, está contaminada por corrupção, guerras, poluição. É um movimento em direção à morte que ninguém para. Hoje não se colocam nos maços aquele dizer "o cigarro mata"? Podemos dizer o mesmo de nosso mundo hoje: a civilização mata.

    A FÉ, TEMA DE "ESPELHO MÁGICO" (2005) - A fé continua tendo um papel fundamental, é o alimento da vida. Não existe criação sem um criador. Nós acreditamos no que está criado; alguns põem em dúvida o criador. Mas a prova de sua existência é a própria criatura. O problema todo é acreditar apenas no que está comprovado. A grande força da fé está no contrário, no crer sem provas.
    "Espelho Mágico" é a história de Alfreda, dama rica cujo maior sonho é a ser agraciada com a aparição da Virgem Maria. Sua contradição é acreditar piamente na existência da Virgem Maria, mas querer a todo custo encontrá-la para fazer algumas perguntas, encontrar alguma explicação. Que explicação? Não sabemos.

    POSSÍVEL CONSELHO PARA OS NOVOS CINEASTAS - Uma vez, uma rapariga me enviou uma carta pedindo uma opinião sobre um projeto de documentário que sua irmã estava desenvolvendo. Me perguntava o que ela devia fazer. Se ela não sabia, como saberia eu? Não se ensina a vocação a ninguém. Só a técnica é que se pode aprender.

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