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    Opinião

    Cinema de Manoel de Oliveira era síntese do teatro e da literatura

    JOÃO PEREIRA COUTINHO
    COLUNISTA DA FOLHA

    02/04/2015 11h52

    Manoel de Oliveira é um caso singular na história do cinema. Seria sempre um caso singular por sua longevidade —morrer aos 106 anos, em plena atividade como diretor, depois de oito décadas de trabalho e mais de 50 longas-metragens, é uma proeza que dispensa comentários.

    Mas Oliveira não é só uma curiosidade biológica. Como diretor, Oliveira procurou um cinema que fosse a síntese de todas as restantes artes, em especial do teatro e da literatura. Aqueles que acusam Oliveira de ser "difícil", "demasiado cerebral" ou até "entediante" persistem em aplicar aos seus filmes critérios que Oliveira sempre recusou.

    Para o diretor português, o cinema, mais do que uma arte autônoma das linguagens teatrais ou literárias, existia sobretudo para as fixar e, mais importante ainda, para refletir sobre elas. Em "Acto da Primavera" (1963), "O Meu Caso" (1986) ou "Inquietude" (1998), por exemplo, o teatro oferece-se mesmo como personagem central do próprio exercício cinematográfico, numa fusão "documental" de gêneros cara a Oliveira.

    Sobre a relação com a literatura, é difícil encontrar um diretor que tenha conferido à palavra escrita um estatuto tão relevante.

    Esse estatuto começa logo na escolha de obras literárias para as filmar, por vezes no sentido integral do termo: "Amor de Perdição" (1979), transposição fidelíssima do romance homônimo de Camilo Castelo Branco, ou "O Sapato de Cetim" (1985), que nas suas sete horas de duração procura "ler" a peça de Paul Claudel (1868-1955), são apenas dois exemplos da sacralidade que Oliveira atribuía à escrita e aos seus criadores.

    E a lista de criadores é vasta: Agustina Bessa-Luís, que teve romances adaptados por Oliveira ("Francisca", 1981) ou que diretamente escreveu diálogos para os seus filmes ("Party", 1996); mas também José Régio ("Benilde ou a Virgem Mãe" 1975), Álvaro do Carvalhal ("Os Canibais", 1988) ou Prista Monteiro ("A Caixa", 1994).

    Entre os estrangeiros, e para além do referido Paul Claudel, as inspirações vieram de Madame de La Fayette ("A Carta", 1999) ou de Machado de Assis ("A Igreja do Diabo", que não chegou a filmar).

    Mas a dimensão literária de Oliveira não se limita à origem livresca dos roteiros. Os seus filmes surgem sempre povoados por evocações eruditas tomadas de empréstimo à cultura ocidental.

    "Vale Abraão" (1993), uma das mais belas obras do cinema português, pretende ser uma releitura moderna de "Madame Bovary", de Flaubert. "O Convento" (1995), uma perturbante fábula sobre a eterna luta entre o bem e mal, é expressamente tributário do "Fausto", de Goethe. E "A Divina Comédia" (1991), ambientada num hospício, oferece uma galeria de figuras eminentes onde Adão e Eva partilham o espaço com Sonya e Raskolnikov, personagens de Dostoiévski.

    Conviver com a tradição literária e filosófica do Ocidente permitiu a Oliveira "pensar" com a câmera temas que o acompanharam toda a vida: a ambição humana e os seus desastres, como no anti-épico "Non ou a Vã Glória de Mandar" (1990); a necrofilia como forma última de paixão funesta, em obras cronologicamente tão distantes como "O Passado e o Presente" (1972) e "O Estranho Caso de Angélica" (2010); ou a força destrutiva do irracionalismo anti-humanista, como se vê em "Um Filme Falado" (2003).

    Nascido no Porto em 1908, ainda Portugal era uma Monarquia, a essa terra granítica Oliveira dedicou o primeiro filme - "Douro, Faina Fluvial" (1931), um breve documentário sobre as atividades dos trabalhadores ribeirinhos -e na cidade continuaria a filmar, com "Aniki Bóbó" (1942) e o autobiográfico "Porto da Minha Infância" (2001).

    Não será de admirar, por isso, que o Porto seja novamente escolhido em "Visita ou Memórias e Confissões" (1982), um filme inédito que, por vontade expressa de Manoel Oliveira, só poderá ser exibido agora. Na hora da sua morte.

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